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Ser mãe é padecer na internet

Opinião|Mães de crianças com deficiência vão à luta

Instituto Lagarta Vira Pupa pretende pressionar por leis e lutar por inclusão

Foto do author Rita Lisauskas
Atualização:

Andrea Werner e o filho, Theo.  

O refrão da música que o filho da jornalista Andrea Werner, 45, cantava sem parar, o 'Pupa, pupa, pupa, a lagarta vira pupa' de "A metamorfose das borboletas", do programa Cocoricó, da TV Cultura, batizou o blog que Andrea criou depois do diagnóstico de autismo do filho Theo, 11, quanto o menino tinha acabado de completar dois anos de idade. O que era um canal de desabafo virou livro, que depois virou ativismo, duas candidaturas para o Legislativo (Andrea foi candidata a deputada federal em 2018 e a vereadora em 2020) e agora um instituto de mesmo nome do blog. O 'Instituto Lagarta Vira Pupa' vai promover mobilização social e política de mães e pais de crianças e adolescentes com deficiência em todo o Brasil. "A gente quer pressionar por leis, pressionar contra leis que são ruins e por políticas públicas", explica. Andrea conversou com o blog enquanto selecionava as embaixadoras do instituto, que devem agir em todo o Brasil.

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Blog: O que é o Instituto 'Lagarta vira pupa'?

Andrea: O Instituto é, na verdade, o próximo passo do blog 'Lagarta vira pupa', que começou como blog, que era como um 'desabafo' que fiz depois que meu filho foi diagnosticado com autismo. Com o tempo, acabou virando uma rede grande de informação, de acolhimento de outras mães, de ombro amigo mesmo, e também de eventos inclusivos, que foi uma coisa que eu comecei a fazer em 2014 para que as mães tirassem essas crianças e adolescentes com deficiência de casa, levassem a um parque, ocupassem os espaços públicos.

A ideia de fazer um instituto foi para poder amplificar mais essas ações, inclusive para todo o Brasil, porque eu acabava ficando muito focada aqui em São Paulo, por questões de deslocamento mesmo, mas agora tendo 'embaixadoras' no país inteiro poderemos amplificar essas ações de mapeamento de mãe e famílias em situação de vulnerabilidade, tanto para dar apoio psicológico, jurídico ou até material, organizar esses eventos inclusivos para depois da vacina, organizar as rodas de conversa virtuais na pandemia, aí teremos mais braços para poder espalhar essa ajuda a chegar em mais famílias.

Blog: O que são essas embaixadoras? E como isso vai funcionar?

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Andrea: Geralmente, as mães que se cadastram como embaixadoras são aquelas com o perfil mais ativista, que já realizavam algum tipo de acolhimento, mobilização social ou política na região delas, geralmente esse é o perfil. E a gente quer que essas mães sejam a voz do Instituto nas regiões onde vivem, nos ajudando a mapear essas famílias e também a trazer demandas das regiões delas.  Além da mobilização social, o outro braço do Instituto é o da mobilização política, a gente quer pressionar por leis, pressionar contra leis que são ruins e por políticas públicas, e essas embaixadoras seriam as vozes de suas cidades dentro do instituto.

Blog: Na sua opinião, o que mudou nesta geração de mães de crianças atípicas se compararmos com as das gerações atrás?

Andrea: Eu mesma sou um exemplo disso. O sofrimento que eu tive quando eu descobri que meu filho era autista em parte se deve ao fato de eu não ter convivido com deficiência na minha época de criança, no início dos anos 80. Naquela época, as pessoas com deficiência não conviviam na sociedade, elas viviam em institutos ou então trancadas dentro de casa - todo mundo se lembra da casa de algum conhecido da família onde havia uma criança trancada dentro de um quarto, fazendo barulhos estranhos e as pessoas agindo como se ninguém estivesse ali, como se nada estivesse acontecendo. Então, a segregação sempre foi natural na nossa sociedade. Mas, de uns anos pra cá, temos aplicado muito mais inclusão, há leis determinando que as crianças com deficiência têm que estudar na mesma classe das crianças sem deficiência, tivemos a convenção da ONU dos direitos das pessoas com deficiência, chamando pra inclusão não só na escola, mas na sociedade ou no mercado de trabalho, no lazer, na cultura. As pessoas com deficiência não querem só ir no médico. Elas querem participar da sociedade e ter um emprego também.

 Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Blog: Quais são as maiores barreiras para essa inclusão, se ela já existe no papel?

Andrea: Eu sempre falo que a maior barreira é a cultural. A maioria das mães de deficientes tem uma história do filho na piscina do prédio, no parquinho ou no playground sofrendo um episódio de preconceito, de ter visto outra mãe puxar seu filho para longe do filho dela ou de ouvir comentários maldosos. As mães ficavam machucadas com esse tipo de coisa e acabavam não levando mais as crianças para o espaço público, o que me causa revolta, porque todo mundo paga imposto e nossos filhos são cidadãos, eles também têm o direito de ocupar o espaço público. Foi aí que a gente começou a fazer esses eventos inclusivos para ver aquele monte de criança e adolescente com deficiência se misturando com os irmãos que não tem deficiência, isso é inclusão e ocupação quase política do espaço público. Não adianta fazer cara feia nem nada, essas pessoas vieram para ficar e a ideia é essa mesmo, fazer que essas percam o medo, a vergonha, não tenham mais medo do preconceito. A verdade é que a sociedade não vai se preparar para o que não está lá, por isso se a gente não levar nossos filhos para a piscina, para o parque, para o shopping, ao restaurante, a sociedade não vai se preparar, porque a gente tem que ter essa coragem de enfrentar esse preconceito.

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Blog: Você está falando de mães e de crianças com deficiência, mas cadê os pais das crianças com deficiência? Eles são mais raros? São só as mães que cuidam das crianças com deficiência?

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Andrea: Eles são muito raros porque o abandono parental é grande e não é novidade no Brasil, a gente tem mais de cinco milhões de crianças sem o nome do pai na certidão de nascimento. E no caso de crianças com deficiência, esse abandono é ainda maior. Existe um estudo do Instituto Baresi que diz que 78% dos pais abandonam a família quando nasce uma criança com uma doença rara ou uma síndrome rara. Então é muito comum se você vai em uma APAE, se você vai em uma AACD, você só ver mães. A gente tem homens, pais que são ativistas, mais eles são a exceção da exceção. Então por isso que o Instituto é direcionado para o público feminino, porque são elas que sentem na pele, são as cuidadores não remuneradas, desvalorizadas, abandonadas e são as que mais precisam de política pública.

Blog: Como você viu esse acesso ao BPC dificultado pelo presidente Jair Bolsonaro na virada do ano?

Andrea: Quando o Bolsonaro tomou posse teve aquele discurso em libras da Michelle (Bolsonaro), ficamos sabendo que ela tinha um tio que era surdo e que ela era muito dedicada à causa da pessoa com deficiência, o que nos deu esperança de que haveria um olhar especial à pessoa com deficiência. E o que a gente vê é que isso não se concretizou, desde que ele tomou posse vem sendo um ataque após o outro - o CONADE (Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência), o principal órgão de controle dos direitos às pessoas com deficiência, foi praticamente desmontado de suas atribuições, virou um órgão puramente consultivo, não mais deliberativo. Há um ano a gente viu o ataque às cotas das pessoas com deficiência no mercado de trabalho, se possibilitou que as empresas pudessem pagar uma multa ou uma contribuição a uma instituição e assim não contratar uma pessoa com deficiência, sendo que a gente sabe que só existem 500 mil pessoas contratadas no mercado formal por causa das cotas, que é uma ferramenta super importante. Não é a primeira vez que se ataca o BPC, o pente fino tem aumentado, por qualquer motivo se corta o BPC das famílias, e a gente está falando de idosos e pessoas com deficiência de baixíssima renda, só tem direito quem ganha um quarto de um salário mínimo por pessoa, o limite.

Blog: E isso impacta diretamente as mulheres, as mães - porque se elas são sozinhas e têm que cuidar de seus filhos, elas muitas vezes não conseguem trabalhar, não é?

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Andrea: Exatamente. Ontem mesmo eu estava revendo os cadastros das mulheres que querem ser embaixadoras do Instituto e tinha uma que dizia 'eu tenho três filhos, um deles tem deficiência severa, eu sou a única cuidadora, o pai se mandou, então eu não posso trabalhar fora, eu vivo do BPC'. Então são famílias que ficam em situação de extrema vulnerabilidade sem o BPC.

Blog: E o que você achou do decreto presidencial assinado ano passado que incentivava a separação de alunos com deficiência - e que depois foi suspenso pelo STF?

Andrea: A escola especial acaba suprindo buracos que a gente tem na assistência social e na saúde - é esse o papel da escola especializada hoje em dia. As crianças e adolescentes, muitas vezes com deficiência severa, estão ali porque recebem algum nível de terapia, algum nível de atenção especializada que faltou na assistência social e na saúde. Mas não é escola, não está cumprindo o papel de escola. Então, quando tivemos as leis que direcionaram à inclusão, inclusive pactos internacionais que o Brasil assinou em relação a inclusão, como a Convenção de Salamanca, por exemplo, o que o governo deveria ter feito era ter investido em inclusão, porque você fazer a inclusão de uma criança com deficiência não é só boa vontade. Você tem que capacitar os professores para que eles saibam ensinar, porque existem diversas formas de aprender. A gente precisa capacitar os lugares, porque uma sala com 40 alunos não é boa nem para uma criança que não tem deficiência, imagina para uma criança que tem deficiência sensorial, que não aguenta muito barulho. Tudo precisa de investimento e esse investimento não foi feito como deveria.

Então isso levou algumas mães, mesmo no desespero, sofrendo com a falta de inclusão na escola, a pedirem a escola especializada. Então quando esse decreto veio algumas mães acharam que era bacana mesmo, porque o próprio presidente e a primeira dama falaram sobre o decreto que 'é só para aquele que não se beneficiar da inclusão'. Mas de a escola não incluiu - a culpa está no aluno? A gente sabe o que foi feito na escola para que esse aluno seja incluído? E por todos os tratados internacionais que o Brasil assinou, não pode voltar a investir em escola especializada como investimento da União, os investimentos têm que ir para inclusão. Então o decreto era inconstitucional, havia vários problemas no decreto.

Semana passada o presidente Jair Bolsonaro veio a público e soltou que 'os alunos atrasados atrapalham a sala inteira', ou seja, que ele achava melhor separar. E para mim ali ficou claro que o objetivo do decreto não era o bem-estar das crianças com deficiência, mas sim separar mesmo. Então eu fiquei muito feliz que o STF derrubou essa medida que, de fato, é inconstitucional.

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Blog: Como o Instituto Lagarta Vira Pupa vai se sustentar?

Andrea:  Por enquanto ele sobrevive pela venda dos meus livros, que é a única renda que a gente tem, meus livros estão sendo vendidos no site e todo o lucro dele está sendo destinado às ações sociais do Instituto. A partir do momento que a 'papelada' estiver pronta a gente vai começar a procurar parcerias para começar a fazer acontecer, essas coisas exigem dinheiro -e a gente já tem ideia para uma ação grande para o dia internacional da mulher, vamos procurar parcerias, procurar doações. Por enquanto é tudo virtual, usando o zoom, o google meet. A gente quer transformar essas rodas de conversa em rodas de escuta qualificada, sempre com uma psicóloga, uma advogada, para dar aconselhamento jurídico para essas mulheres que muitas vezes não sabem os direitos que elas têm - a gente quer fazer uma coisa mais profissional que antes que era 'vem cá, chora no meu ombro, eu te dou um abraço'.

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Opinião por Rita Lisauskas

Jornalista, apresentadora e escritora. Autora do livro 'Mãe sem Manual'

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