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Todo dia era dia de índio

"Se metade da turminha que frequenta o Coachella usando peças da 'tendência Navajo' soubesse um pouco da história daquele povo, talvez não se fantasiasse de índio", escreve a colunista Michelli Provensi

Por Michelli Provensi
Atualização:
Em 2012, a Victoria's Secret colocou a modelo Karlie Kloss usando um cocar nas passarelas. Após criticas, a marca pediu desculpas e retirou o adereço de todas as coleções da marca Foto: Amanda Schwab/Starpix/Associated Press

Parte da história do mundo pode bem ser contada em uma semana de moda. E a moda nada mais é do que as histórias que contamos.Vivemos num planeta globalizado em que não faltam lugares para buscar referências -isso, ao menos da bolha que tem acesso a toda informação que fabricamos. O CEO do Google já disse que em dois dias atuais geramos mais dados do que a humanidade toda desde o princípio ao ano de 2003.  Hoje, da sua cadeira, um estilista pode fazer uma vivência inteira numa tribo na Sibéria, reproduzir traços daquela cultura e iniciar uma nova onda. Porque moda também é maré e as coisas vão e voltam. Também pode esmiuçar pinturas de determinada população indígena brasileira e transformá-la em padronagem. Vale refletir sobre o tema neste 19 de abril, dia do índio.   Se eu tentasse entender aquela minha camisa estampada de flores e investigasse a fundo sua origem talvez tivesse uma boa aula de história. Um desenho que para mim apenas faz sentido estético, para determinado povo pode estar ligado a algo sagrado e vital. John Galliano, nos tempos como estilista da Dior,era o rei da imersão cultural. Buscava inspiração nos povos das partes mais extremas do planeta, sem necessariamente precisar ir até eles. 

Passava longos dias em museus estudando peças de vestuário detribos e civilizações antigas. Fascinado pelo modo de se vestir arcaico, Galliano sempre mostrou imenso talento na arte de adaptar detalhes e estilos antigos de forma contemporânea.A simbologia emprestada virava um show na passarela. Apropriaçãocultural é algo que acontece todos os dias no mundo dos criadores. Está no subliminar coletivo: inspiramos e somos inspirados por outras culturas. 

Peças com inspiração Navajo são as favoritas dos frequentadores do Coachella Foto: Reprodução/Pinterest

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Padrões e estampas indígenas sempre representaram algum exotismo na moda, mas muitas vezes vemos uma apropriação indevida. O designer acha lindo, copia, revende para o mundo e assina com seu nome. Um caso marcante ocorreu no ano passado envolvendo a estilista francesa Isabel Marant, aquela que inventou o tênis de salto com a língua almofada de gosto desafiador, com preço de Loubotin, que foi replicado no mundo inteiro (por mim Iemanjá pode levar este tênis oferenda para o fundo do mar). 

A estilista foi acusada de se apropriar indevidamente de um modelo de uma bata da tribo Mexicana tlahuitoltepec, que traz na sua linhagem aquela vestimenta por mais de 600 anos como símbolo de identidade. Sem a internet, aquelas artesãs, que contam a história do seu povo numa blusa que pode ser comprada pelo equivalente a 65 reais, nunca saberiam que no mercado de luxo uma copia idêntica de seu trabalho estava sendo vendido por 1.000 reais, sem nem ter sua fonte citada.   Se metade da turminha que frequenta o Coachella e outros festivais genéricos usando peças da 'tendência Navajo', que serve de inspiração há anos para a criação de pantufas abiquínis, soubesse um pouco da história daquele povo e suas simbologias, talvez não se fantasiasse de índio. Ou quem sabe honraria e entenderia mais a roupa que escolheu para dançar e pertencer àquela grande tribo de festivais. 

A camisa de Isabel Marant que foi acusada de plágio pela marca Antik Batik Foto: Divulgação

Já que a gente gosta tanto de beber nesta fonte cultural, porque a gente a destrói e a repudia tanto? Copiar pode ajudar a proteger seus direitos? Por aqui, a PEC215 é o maior retrocesso na luta das diversas etnias indígenas, deixando esses povos ainda mais vulneráveis ao esquecimento, ao abandono e à possível extinção. Politicamente, há um descaso geral. Mesmo com o nosso potencial considerável para gerar energia solar e eólica, ainda temos que engolir hidrelétricas em pleno 2016, construída por causa de interesses e acordos entre políticos e construtoras. Só na bacia do rio Tapajós estão previstas 43 hidrelétricas, quando um rio morre muita coisa morre com ele...    Numa entrevista a um jornal inglês, Galliano disse que a moda é empurrada para a frente com os aprendizados do passado. Se o passado não foi suficiente, é preciso tentar aprender com o presente. Vale a pena relembrar a canção da Baby: "todo dia era dia de índio".E me pergunto quando a gente vai dar devido valor a eles. 

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