Sou bígama

‘Sim, eu era a noiva. Mas também era uma mulher casada cujo amor pelo primeiro marido não cessou no túmulo e não iria acabar no altar também’

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Por Jill Smolowe
Atualização:
"Apesar de a morte ter perturbado o sentido de permanência de ambos, a dedicação e o amor pelos nossos consortes falecidos permaneceram intactos" Foto: Ruth Gwily/NYT

Entre os conceitos equivocados mais populares sobre a dor e sua trajetória um que particularmente irrita pessoas que ficaram viúvas é de que, com um novo relacionamento amoroso você deixa de sofrer.

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É ridículo. Conversando com centenas de indivíduos que ficaram viúvos, descobri que, como eu, todos aqueles que sepultaram um companheiro amado jamais deixaram de sofrer a sua perda. À medida que o tempo passa e a vida abre novas possibilidades e oportunidades, a intensidade da dor diminui, torna-se mais tolerável e menos crucial no decorrer dos dias. Mas o amor não desaparece. E esteja certo, onde há amor, há dor.   Isto ficou claro mesmo no dia em que me casei pela segunda vez, em 2013. Minutos antes da singela cerimônia, repentinamente, me vi lutando para conter as lágrimas que me impediam até de identificar minha filha Becky, e caminhei pelo longo corredor em direção da salão onde foi realizado meu casamento com meu novo amor, Bob.

"Você tem de parar de pensar no papai", disse minha filha.

Era isto? pensei. Ali estava eu, frente a frente com Bob e então me dei conta: sim, era exatamente isto. Ao ver as lágrimas pelo meu rosto, Bob também tentava conter as suas. Como eu, ele tinha perdido sua querida esposa que morreu de um câncer. E como eu ele tinha plena consciência de que não estaríamos ali, cercados por nossos três filhos, se nossos consortes ainda estivessem vivos. 

Discutimos tudo isto nos meses que antecederam o nosso casamento. Mas não imaginava o quão dolorosa aquela separação seria num momento de tamanha alegria. E também não consegui prever a dor que senti quando o proprietário da pousada onde passamos nossa noite de núpcias nos recebeu ruidosamente dizendo "os recém-casados chegaram". Nesse momento percebi que a partir daquele dia as pessoas não mais me veriam como a viúva de Joe; para o mundo eu era agora a mulher de Bob.

E assim é. Mas sou também a esposa de Joe. O que faz de mim uma bígama.

Demorou algum tempo para me convencer disto. Agora que estou convencida, acho bom explicar porque a decisão de nos casarmos não provocou nenhuma efervescência na boca do meu estômago. Ou porque não senti nenhuma pressa de dizer ao mundo: "estou noiva!". Ou porque fingi estar entusiasmada para estar condizente com as vendedores da loja onde comprei meu vestido de casamento. Ao mencionar em voz baixa que o casamento em questão era o meu próprio, os gritos de "a noiva" me deixaram embaraçada.

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"Claro, eu era a noiva. Mas também era uma mulher casada cujo amor pelo primeiro marido não cessou no túmulo e não iria acabar no altar também. Bob sentia o mesmo com relação à sua mulher, Leslie, o que explica porque não conseguíamos nos sentir recém-casados após nosso casamento. Fui casada durante 24 anos; ele 37. A ideia e o mistério do casamento não eram novidade para ambos. Esta nova união não apagou o que cada um de nós já tivera. Apesar de a morte ter perturbado o sentido de permanência de ambos, a dedicação e o amor pelos nossos consortes falecidos permaneceram intactos. 

Hoje, depois de cinco anos casados, os sentimentos de Bob e os meus com relação aos nossos esposos falecidos não mudaram. Nem queremos. E não esperamos isto um do outro. Enquanto muitos amigos raramente evitam mencionar os nomes de Joe ou Leslie (não sei se é porque nos casamos novamente ou porque as pessoas temem que a simples menção dos nomes deles possa nos perturbar), entre nós conversamos o tempo todo sobre eles. Nossa casa está repleta de fotos dos nossos primeiros casamentos. Queremos que nossos filhos sintam-se "em casa" quando nos visitam. Como seria possível se não houvesse lembranças dos seus outros pais?

A maior parte do tempo sou mulher de Bob, papel bem diferente de ser a mulher de Joe. Não é que eles sejam - é claro - duas pessoas completamente diferentes. Se o meu casamento com Joe teve de enfrentar os desafios de construir nossas carreiras, uma família e um patrimônio, minha união com Bob envolve outros tipos de desafios: como desenvolver atividades que nos satisfaçam após nossa aposentadoria, como nos colocarmos à disposição dos nossos filhos sem interferir na vida deles, como desfrutar do nosso patrimônio construído com tanta dificuldade e ao mesmo tempo deixar um suporte financeiro para nossos filhos. Quando penso no futuro penso em viajar, escrever e dar aulas, em netos (espero), na mulher de Bob (sem dúvida).

Mas não passa um dia sem que eu me sinta também a esposa de Joe. Normalmente essa sensação é provocada por alguma coisa relacionada a Becky, que logo mais completará 21 anos e um ano depois irá se formar na faculdade. Quero ansiosamente saber o que será dela na vida adulta - mas o diálogo que desejo muito não é com Bob. É no conselho de Joe que penso quando me pergunto como enfrentar essa questão: ela é adulta agora, salvo quando não é. A tranquilidade de Joe que busco ansiosamente quando ela me anuncia que está fazendo uma viagem de carro de 22 horas sozinha. É a voz prudente de Joe que ouço quando percebo que estou prestes a dar um conselho que não foi pedido.

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Joe também está muito vivo para mim de outras maneiras que não têm relação com Becky. Vejo seu sorriso de satisfação toda vez que uso uma joia que ele me presenteou. Ouço sua risada quando escrevo uma frase bem humorada. Sinto o cheiro do seu suor quando me estendo no tapete do quarto para esticar e aliviar um músculo dolorido e imagino que ele está ao meu lado, também se esticando depois de um longo passeio de bicicleta. Sinto sua mão na minha quando me lembro de nós dois correndo na rua para ver uma peça de teatro. Sinto seus lábios quando o tempo frio me traz lembranças do nosso primeiro beijo na porta de casa. 

Saboreio cada momento e não quero perder nenhum deles. Toda vez que uma vívida lembrança de Joe toma conta de mim, sinto que, embora ele tenha partido, nosso amor perdura.

Recentemente, sem nenhuma explicação ou preâmbulo, perguntei a Bob: "Você é bígamo?" "De maneira nenhuma", ele respondeu. Não é de admirar que amo muito este meu segundo marido. 

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Tradução de Terezinha Martino

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