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Seria Karl Lagerfeld o Donald Trump da moda?

Na era em que as empresas sofrem boicotes por qualquer atitude fora da curva, o estilista da Chanel e da Fendi parece continuar imune. O que faz dele tão especial?

Por Vanessa Friedman
Atualização:
Karl Lagerfeld, estilista da Chanel, é conhecido por fazer comentários ultrajantes Foto: Dmitry Kostyukov/The New York Times

Estamos em um momento de falar e criticar. O comentário de mau gosto de hoje pode ser a polêmica de amanhã e, em um mundo onde todos são uma marca, o boicote do consumo virou uma arma de ação.  Recentemente, Kanye West motivou um movimento contra a Adidas, sua parceira na Yeezy, quando disse em uma entrevista que 400 anos de escravidão lhe "pareciam uma escolha". Quando Donna Karan veio a público após as revelações de abuso sexual do produtor de cinema Harvey Weinstein perguntando se as mulheres não estavam "pedindo" por problemas pela maneira como se vestiam, foi armada uma petição para que as multimarcas norte-americanas Nordstrom e Macy's parassem de vender DKNY (mesmo que desde 2015 Donna não esteja mais associada à grife que fundou).  Não podemos esquecer do movimento #GrabYourWallet (agarre sua carteira, em português), que boicotou a marca Ivanka Trump depois do vazamento de comentários feitos por Donald Trump sobre agarrar mulheres de maneira agressiva e que continuou após o empresário se tornar presidente dos Estados Unidos (nada mudou mesmo Ivanka tendo se afastado da empresa depois das eleições).  A Dolce & Gabbana até fez uma camiseta bem irônica com os dizeres #BoycottDolce&Gabbana após começarem este movimento - sim, tentaram prejudicar as vendas da grife italiana por causa de sua relação com Melania Trump.  E, ainda sim, existe uma exceção à regra: Karl Lagerfeld.  O diretor criativo da Chanel e da Fendi e fundador da marca que leva seu nome é conhecido por ser o "melhor falador de Paris desde Oscar Wilde", como disse Godfrey Deeny, editor do Fashion Network. Mas, enquanto ele pode ser terrivelmente citável e divertido, ele também tem uma tendência a falar coisas ultrajantes. E, ultimamente, estes tipos de comentários parecem que estão aumentando.  Semana passada, Lagerfeld deu uma entrevista ao jornal francês Le Point, na qual afirmou estar considerando renunciar sua cidadania alemã por causa dos 1 milhão de muçulmanos que Angela Merkel recebeu no país, uma decisão que ele conecta ao aumento do neo-nazismo na Alemanha.  A declaração tomou conta das manchetes dos jornais alemães e fez com que voltassem à tona comentários com o mesmo tom feitos no passado, como quando ele disse em um programa de televisão que "não se pode - mesmo que tenham se passado décadas - matar milhões de judeus para trazer milhões do povo que é seu pior inimigo para sua casa."  A fala ocorreu algum tempo depois dele, que é um ótimo cartunista, ter desenhado para o jornal Frankfurter Allgemeine Zeitung uma imagem de Adolf Hitler agradecendo Merkel por ter permitido o avanço da bancada de extrema direita no parlamento. Essa declaração foi divulgada pouco depois de outra entrevista, essa para a revista francesa Numeró, na qual ele desdenhou do movimento #MeToo e afirmou que "se você não quer que abaixem suas calças, não vire modelo."  É como se ele estivesse enfiando o dedo na tomada só para ver o que acontece. Mas é aí que tá: não acontece muita coisa.  Todas as vezes em que Lagerfeld faz um comentário incendiário, rola um burburinho online, mas é contido e focado nele, e não nas marcas que o empregam e o deixam em destaque. Não existe uma chamada para boicotarem a Chanel, a Fendi ou mesmo a Karl Lagerfeld. As empresas nem se importam mais em emitir o comunicado clássico "não concordamos, mas ele é uma pessoa e tem o direito de ter seu próprio ponto de vista". Eles simplesmente não comentam e não respondem. Como pode? Não existem dúvidas de que o kaiser ocupa um espaço único no universo da moda. Ele é uma das pessoas que moldou a indústria como conhecemos (e nossos guarda-roupas), junto com nomes como Giorgio Armani e Rei Kawakubo e, provavelmente, é o mais próximo de uma lenda viva que existe na moda.  Uma certa tolerância de idiossincrasia vem junto com isso - meio como "de novo o tio do pavê falando essas coisas" - assim como o medo de criticar a pessoa mais poderosa do ambiente. Especialmente quando essa pessoa poderosa trabalha para uma empresa, como a Chanel, que possui seu próprio pedestal de poder.  Na verdade, um amigo que criticou Lagerfed pra mim pessoalmente disse: "Não coloque meu nome, por favor. Não quero perder meu assento na quinta fileira dos desfiles da Chanel". Quando Sara Ziff, fundadora da Model Alliance, falou mal de seus comentários sobre as modelos, ela recebeu uma enxurrada de mensagens de apoio privadas, de pessoas que disseram que não poderiam falar isso em público.  Mesmo assim, nenhuma marca é totalmente intocável. Em maio, a Chanel foi alvo de uma polêmica sobre apropriação cultural na Austrália depois de criar um boomerang de 1.325 dólares, que a forçou a fazer uma comunicado de desculpas anunciando que "não era nossa intenção desrespeitar os aborígenes nem a comunidade das ilhas do Estreito de Torres."  E só porque o mundo da moda treme no alto de seus saltos altos com a ideia de dar um basta em Lagerfeld, não significa que o público consumidor também tenha que temer. O que sugere que existe algo mais ocorrendo, e que, talvez, tenha mais a ver com a cultura e com a política atual do que os boicotes.  Sim, estou falando sobre Donald Trump. Assim como o presidente norte-americano e seus tweets, Lagerfeld diz coisas ultrajantes regularmente há tanto tempo que todo mundo parece estar insensível aos seus comentários. Eles são quase esperados. Ele se posiciona como provocador, é parte de sua marca.  E, antes que você consiga digerir uma de suas falas, ele já está na próxima. Tudo é dito com volume e certeza suficientes para abrir caminho para mais tagarelices. (West faz o mesmo, mas não é tão bem sucedido.)  Parece que estamos vivendo uma estranha dualidade. Logo quando nos tornamos mais sensíveis com as experiências de diferentes grupos sociais, também estamos afogados em discursos de ódio, sejam eles originados na Fox ou na moda.  Mas, falando de moda, Deeny acredita que existam sinais de mudança. "Logo após o último desfile Cruise da Chanel, os jornalistas foram informados na festa dentro do navio montado no Grand Palais que eles só poderiam cumprimentar cordialmente Lagerfeld, e não fazer nenhuma pergunta", ele disse, notando que ação minimizou os riscos de algo que o estilista poderia dizer.  "Em 25 anos falando com Karl antes e depois dos desfiles, enquanto trabalhava para o WWD, Vogue Hommes, Le Figaro e, agora, Fashion Network, não consigo lembrar outra vez que isso tenha ocorrido." 

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