Quando demais nunca é o suficiente

Quando você é uma peneira emocional, não consegue se saciar: Um fluxo constante de tudo o que você deseja vazará pelos espaços vazios e portanto nunca chegará

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Por Gina Barreca
Atualização:
A sensação dominante de necessitar cada vez do que quer que seja está aumentando na nossa cultura Foto: David I. Haeni/ Creative Commons

Quando ouvimos a palavra "chega", ela soa como uma reprimenda, como um suspiro de cansaço ou um aviso de que está na hora de arrumar as malas e ir embora? Quando é que "chega", significa: "Não quero mais"? Como você sabe que não quer mais?

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Eu sou normalmente atraída pelo excesso; levei um tempo exorbitante para aprender um pouco de moderação. Pertenço a uma família na qual as pessoas sentam à mesa e comem até não conseguir se mexer. Se depois de engolir um prato de espaguete, pão, peixe e berinjela eu decidisse pular as costelas de porco, as pessoas achariam que estava doente. Elas não me dariam o benefício da dúvida; e diriam: "Não gostou? Nunca mais vai comer". Toda recusa a se empanturrar era considerada uma forma de repúdio, e o repúdio era visto não apenas como uma crítica, mas também como uma espécie de traição.

Imaginem se isto não me serviu de modelo para os meus relacionamentos. Eu achava que a única maneira de fazer alguma coisa era exagerando. Pratiquei a histeria como as outras pessoas com que praticava balé ou conversação em francês. 

A histeria tem um quê do êxtase: As pessoas ficam tão absorvidas que ficam fora de si. O problema é que ao saírem de si, se forem longe o bastante, talvez não voltem mais.

O fato de acreditar em minhas reações apaixonadas, descontroladas, desmedidas a todo tipo de incidente emocional, significava que eu era uma alma profundamente complexa e intrincada. Levei longos anos para me dar conta de que eu praticamente não conseguia me conter. Fiz de tudo, menos sair correndo na escuridão gritando: "Heathcliff! Heathcliff!" no meio de uma tempestade (como a heroína de 'O morro dos ventos uivantes'). Por outro lado, não tinha um namorado de nome Heathcliff.

Berrei e chorei por outros nomes enquanto caminhava em noites de chuva. Aqueles coitados não tinham ideia de que eu havia projetado neles meu enorme leque de desejos insatisfeitos. Elas achavam que haviam sido graciosamente absolvidos por serem namorados razoavelmente atraentes, gentis, amorosos e em geral telefonavam solícitos.

Mas quando você é uma peneira emocional, não consegue se saciar: um fluxo constante de tudo o que você deseja vazará pelos espaços vazios e portanto nunca será o suficiente.

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Acreditava que precisaria de mais, mas não sabia de que, aliás não tenho certeza se sei agora. A saciedade continua sendo um conceito vago. Ainda é difícil para mim recusar algo à mesa quando restou um pedacinho de algo de que gosto num prato. Não é que tenha fome, mas sou capaz de ir atrás de uma rabanada como uma gaivota num lixão. Continuo sendo a pessoa que, mesmo em eventos formais, pergunta para a pessoa ao seu lado: "Vai comer tudo isto?"

A sensação dominante de necessitar cada vez do que quer que seja está aumentando na nossa cultura. A oferta de um fabricante de uma máquina de cozinhar arroz que mudará minha dieta, minha maneira de viver e minha capacidade de lidar com os problemas do agrobusiness criará em mim a necessidade de uma máquina de cozinhar arroz. Ou mais de uma.

Anunciantes extraordinariamente espertos criam toda essa elaborada arquitetura da necessidade: não acho que os membros das tribos de beduínos acordem de noite pensando: "Você sabe o que poderíamos fazer neste momento? Preparar arroz numa máquina de cozinhar arroz de aço inoxidável".

Evidentemente é difícil saber quando estamos cansados de sofrer , principalmente quando a dor se torna familiar. Todos nós tivemos relacionamentos, pessoais ou profissionais, que duraram mais do que deveriam. A um certo ponto, tivemos a coragem de encerrar tais relações, e seria fascinante decifrar o momento em que percebemos que, "chega, significa não dá mais". Em geral, só podemos distinguir a ocasião da causa retrospectivamente.

Meus alunos estão preocupados com o futuro. Ouviram dizer que não há empregos, apartamentos e nem mesmo alguém que valha a pena amar que esteja disposto a amar em troca. Lembro-os de que só precisarão de uma destas coisas de cada vez: Eles só precisam de um lugar para viver, um lugar para trabalhar e de uma pessoa que lhes abra a porta do lugar que chamarão de casa.

É possível dizer: "chega" com um sorriso de gratidão, sem ranger dentes e sem bater portas. Um pode ser o bastante - e chega pode ser apenas chega - quando a questão é somente esta.

Tradução de Anna Capovilla

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