O direito sobre o cabelo rastafári

Jornalista negra levanta a questão sobre a apropriação cultural das tranças afro por grifes e celebridades

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Por Andrea Arterbery
Atualização:
Modelos com tranças rastafáriem um desfile recente da grife Valentino, em Paris Foto: Reprodução/ Facebook Valentino

Não existe como dourar a pílula: sempre sinto uma certa irritação quando vejo uma jovem branca usando cabelo rastafári. Talvez porque esse estilo de cabelo seja vendido pela publicidade como “novo e moderno”. Ou pode ser que eu, como negra, saiba que não é um estilo que as jovens brancas adotavam quando eu era menina e lembre qye as garotas sempre me ridicularizavam por causa do meu cabelo trançado. Entendo: é uma moda legal. Mas a irritação ainda ficou presente em setembro quando vi muitas modelos brancas com penteados em estilo rastafári na passarela da marca Desigual durante a Semana da Moda de Nova York. O cabeleireiro responsável, Edward Lampley, disse-me que a inspiração na verdade foi na cultura de rua japonesa sem nenhum vínculo com a cultura africana.

Já a grife Valentino admitiu que seu desfile em outubro na Semana de Moda de Paris foi inspirado na cultura africana. O hair stylist encarregado, Guido Palau, criou tranças com um coque no alto. O portal Fashionista.com reportou que somente 10 modelos eram negras e, em questão de minutos, depois que mostrou as modelos brancas usando tranças, as imagens se espalharam pela internet, o que levou várias pessoas a censurarem a apresentação. “Valentino com inspiração tribal/africana e 90% das modelos brancas usando rastafári na passarela. Ughhhh.*Reprovação total*”, escreveu uma jovem no Twitter. “Valentino realmente tem de parar com os cabelos rastafári em modelos brancas”, pontuou outra. 

Modelos com tranças rastafáriem um desfile recente da grife Valentino, em Paris Foto: Reprodução/ Facebook Valentino

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Mas cabelo é apenas cabelo e todas as mulheres têm direito a usar o que quiserem, certo? Como cresci em uma minúscula cidade a leste do Texas, fiquei apaixonada por tranças depois de ver outras meninas negras de minha classe ucom elas. Adorava como os penteados eram complicados, especialmente aqueles com contas coloridas entrelaçadas. Para mim não era só era um penteado lindo: as tranças eram também uma forma rápida de evitar os terríveis alisamentos semanais. Alisar o cabelo implicava esquentar um pente no fogão e passá-lo da raiz até a ponta dos fios para esticá-los. Esse processo árduo, que às vezes durava horas, normalmente acabava queimando meu couro cabeludo ou a ponta da minha orelha (porque às vezes não era rápida o suficiente no momento de virar o pescoço). Geralmente o trabalho era concluído aos sábados na cozinha, ou por minha avó ou por minha mãe, com música gospel de fundo, para meu cabelo estar pronto para eu ir à igreja na manhã de domingo. Odiava todo o processo e nenhum choro, súplica ou tentativas de persuasão era capaz de impedi-lo.

As tranças rastafári foram minha rota de fuga e procurava mantê-las durante todo o verão - assim podia mergulhar nas piscinas e correr sem me preocupar se teria de alisar o cabelo de novo. Mas embora adorasse aquele estilo, não gostava quando as meninas brancas na escola caçoavam de mim, dizendo que meu cabelo era “bizarro” ou “do gueto”. Sim, sei que nem todos irão gostar do que você faz com seu cabelo, mas assim mesmo eu me sentia ferida e lembro de me perguntar porque esses insultos eram dirigidos a mim. As tranças rastafári tiveram origem na África e eram usadas predominantemente pelas mulheres. Recordo-me da minha avó contando histórias enquanto trançava meu cabelo, sobre como sua mãe costumava fazer o mesmo, e a mãe da mãe dela, para proteger os fios nos campos de colheita de algodão. 

Tranças rastafári: apropriação cultural ou mais uma maneira de expressão da moda? Foto: Reprodução/ Tumblr

“As tranças rastafári eram nossa maneira de manter uma conexão com uma terra perdida”, afirma Michaela Angela Davis, crítica cultural e escritora que reside em Nova York. “Sabíamos de onde vinham e ninguém poderia roubá-las ou arrancá-las de nós. É um estilo de cabelo 'negro' e todos sabem disso”. Muitas mulheres brancas famosas - especialmente Bo Derek, no filme “10” de 1979 - usaram cabelo rastafári, incluindo Madonna, Melanie Griffith, Cristina Aguilera, Kristen Stewart e Lena Dunham. Não é incomum hoje ver no Instagram celebridades como Cara Delevingne e Kylie Jenner num selfie usando esse visual. Bethann Hardison, que foi a modelo pioneira na adoção do estilo rastafári e conhecida defensora da diversidade na moda, disse que não se sentiu ofendida quando viu mulheres brancas adotando esse tipo de cabelo, especialmente nos desfiles. “Nunca considerei erradas essas adaptações feitas pelas pessoas. Cabelo é cabelo”, disse ela, referindo-se às modelos brancas com rastafári no desfile de Valentino.

Anthony Dickey, cabeleireiro e proprietário Hair Rules, salão de Nova York, especialista em tranças, disse que não se sentiu ofendido ao ver cabelos rastafári nas passarelas. “As jovens brancas podem usar o cabelo da maneira que desejarem, do mesmo modo que as jovens negras”, acredita ele. Segundo Anthony as revistas precisam refletir mais as suas leitoras e usar belas imagens para representar de modo mais acurado nosso mundo tão diversificado. Jamie Stone, blogueira de Los Angeles, é branca e começou a usar rastafári quando tinha 18 anos e estava de férias nas Bahamas. “Honestamente achei o cabelo das mulheres das Bahamas belíssimo e quis copiar”, afirma. “Não havia má intenção, eu usava cabelo preto apreciando e reconhecendo a relevância cultural disto." Em seu site HonestlyJamie.com, ela falou da sua tristeza com o fato de o cabelo adquirir uma conotação racial. “Acha que uma mulher deve dizer à outra como usar seu cabelo? Não. Compreendo que isto pode ser ofensivo para algumas, mas não para todas mulheres negras. ”

Para Aly Walansky, jornalista do Brooklin, branco, não é correto que todos adotem estilos historicamente negros. “O estilo de cabelo negro não tem a ver apenas com o cabelo. Há uma história e uma cultura por trás. Mulheres como Miley Cyrus acham que podem subir ao palco e ignorar esse contexto”, diz. Sempre existirão escolas diversas de pensamento sobre o que é culturalmente apropriado em se tratando de estilos de cabelo. Mas não estou segura de que a irritação que sinto quando vejo jovens brancas com cabelo rastafári irá desaparecer. Talvez se as minhas experiências de infância tivessem sido diferentes, eu aceitasse melhor essa tendência. Ou talvez se eu abrisse uma revista de beleza como a Allure e visse mais estilos de penteado negros em vez de histórias sobre como criar um penteado afro com a foto de uma modelo branca ao lado. “Nosso cabelo é algo sagrado”, acredita Michaela Davis . “Você aceita isto ou não”. Embora não culpe as jovens brancas por desejarem usar cabelo rastafári, ela aconselha: “Vejam onde estão entrando. Vocês não podem adotar o penteado e não saber lidar com as nossas críticas”.

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Tradução de Terezinha Martino 

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