O ano de memórias desenterradas

Muitos dos problemas com que nos defrontamos em 2015 giram em torno de questões culturais não resolvidas. Como reconhecer erros passados e avançar para a luz?

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Por David Brooks
Atualização:

Medos infantis e traumas de adulto são armazenados no cérebro de modo diferente de memórias felizes. Ficam enterrados como cápsulas porosas, profundamente, nas regiões primitivas, abaixo da consciência e fora do alcance fácil do pensamento e fala conscientes. Permanecem tão fundo que são separados do curso normal da vida, impossibilitando o tempo de exercer sobre eles seu poder de cura.

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Há uma vasta literatura de psicologia sobre os diversos meios pelos quais as pessoas são dominadas por essas cápsulas ocultas. Muitas deixam de sentir os pés no chão, ou se sentem impotentes. Algumas experimentam uma constante e vaga inquietação sobre pontos cruciais da vida, uma incipiente e confusa sensação de depressão, difícil de definir e lidar.

Os sintomas diferem conforme a natureza das memórias escondidas. Há pessoas que se dissociam de suas experiências, ficando emocionalmente à parte do mundo que as cerca. Outras se sentem divididas, como se fossem atores representando vários papéis simultaneamente. Algumas temem assumir compromissos, lembrando de antigos relacionamentos que se mostraram ao mesmo tempo adoráveis e assustadores. Outras ainda têm pesadelos, ou se embotam com drogas, ou ficam paralisadas ante certos estímulos ou circunstâncias.

Culturas também têm de lidar com o peso de memórias difíceis Foto: Pixabay

Há centenas de métodos psicológicos que tentam desenterrar as cápsulas de memória e devolver autoconfiança à pessoa. O processo é difícil. Como Judith Herman escreve em Trauma and Recovery (Trauma e Recuperação), "o conflito entre o desejo de negar eventos horríveis e o de proclamá-los aos gritos é a dialética central do trauma psicológico".

Mas pessoas com paciência e decisão conseguem vislumbrar uma vida luminosa. Elas encaram seus medos e administram as boas e más lembranças - aceitando que muitas verdades diferentes se alinhem lado a lado. Com os anos, muitas desenvolvem um sólido senso de identidade e assumem compromissos duradouros que trazem alegria, força e paz.

Memórias culturais. O paralelo não é exato, mas culturas também têm de lidar com o peso de memórias difíceis. Traumas e experiências dolorosas como exílio, derrota ou opressão podem passar de geração a geração. São lembranças que afetam tanto as vítimas quanto os responsáveis pela vitimização.

Muitos dos problemas com que nos defrontamos em 2015 giram em torno de questões culturais não resolvidas. Como reconhecer erros passados e avançar para a luz?

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O caso mais óbvio envolve as relações raciais entre americanos. Boa parte das conversas do ano foi sobre o racismo e a opressão do passado e o poder desse passado em influenciar as realidades de hoje. Entram aí a bandeira confederada, Woodrow Wilson, linchamentos. Felizmente, muita gente encontrou coragem para abordar feias verdades sobre a escravidão, Jim Crow e o atual racismo, represados num contexto cultural mais amplo.

Muitas das manifestações em câmpus e outros lugares foram sobre desenterrar memórias e firmar pontos de vista, ou, no pior caso, calar outros pontos de vista. Houve episódios agradáveis e desagradáveis durante isso tudo, mas é preciso reconhecer que são bons e necessários estágios na marcha da nação.

Memórias culturais ainda problemáticas têm influenciado outras áreas políticas. No Oriente Médio, sunitas e xiitas travam uma luta sangrenta sobre o passado. A seu modo doentio, o Exército Islâmico é movido a humilhação histórica.

Assim, nos encontramos envolvidos, em todos os níveis, na terapia da memória. Apenas mencionaria três conceitos que podem ser úteis para seguirmos em frente.

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O primeiro é a noção de Miroslav Volf sobre diferença suave. A pessoa que sente na diversidade apenas diferenças radicais considera o mundo dividido entre seu grupo e os de fora. Um demagogo como Donald Trump propõe a escolha leonina: submeter-se ou ser rejeitado. Já quem vê a diversidade caracterizada por diferenças suaves dá aos outros espaço para serem eles mesmos e os convida para perto de si.

O segundo é a distinção entre culpa e responsabilidade. Onde existe culpa, deve haver expiação e mudança. Se você emigrou da Noruega para os EUA no último ano não pode ser responsabilizado pelo histórico de racismo, mas, como novo americano, tem provavelmente a responsabilidade de discutir o problema. Um contexto de responsabilidade é mais tolerante que um contexto de culpa e proporciona mais ambiente para cooperação, ação comum e aceitação.

O terceiro é o perigo da retórica assimétrica. Se alguém numa conversação eleva a retórica a nível 10, o interlocutor também tem de subir para 10, ou retirar-se num silêncio ressentido. A paixão retórica pode destruir a conversação e minar a verdade e a reconciliação.

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Mesmo depois de um ano difícil, procuramos um final feliz. Erros podem ser reconhecidos, memórias desenterradas, velhas feridas identificadas e postas em contexto. E de que serviria isso se não estivermos embalados pela esperança e confortados pela graça?

Tradução de Roberto Muniz

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