'Se estão atacando o diferente do seu lado, um dia pode chegar a sua vez', diz Ronaldo Fraga
Em entrevista ao Estado, estilista fala sobre o momento político do Brasil e a mensagem de tolerância de seu desfile, que colocou judeus e árabes comendo e bebendo juntos na passarela

O estilista Ronaldo Fraga, que fez o mais emocionante destfile desta terça na São Paulo Fashion Week Foto: Marcelo Soubhia/Fotosite
Inspirado em uma viagem de 40 dias a Israel, o estilista Ronaldo Fraga fez um manifesto à tolerância em seu desfile de terça-feira (23), na São Paulo Fashion Week. No centro da passarela, um banquete de pratos típicos árabes e judaicos sobre uma enorme mesa dava indícios do que estava por vir.
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Surgiram então dois homens caminhando sincronizadamente, um deles envolto num lenço palestino com um Hamsá bordado, e o outro usando um casaco com uma estrela de Davi. Ao final do trajeto, em frente aos fotógrafos, eles se encontraram, deram as mãos... e se beijaram.
Numa época em que muito se fala de ódio, Ronaldo colocou o amor literalmente em cena. Quer imagem melhor do que judeus e palestinos desfilando e depois sentando juntos à mesa para a semana que antecede uma das mais polarizadas eleições que o Brasil já viu? “A coleção fala de tolerância como um valor mínimo para o ser humano a essa altura do campeonato”, diz o estilista, que desta vez apostou no jeans, o tecido mais democrático da moda, trazendo bordados de peixes, laranjeiras e efeitos de tapeçaria como elementos decorativos. “O que busquei aqui foi colocar a conversa na mesa de jantar, porque acredito que é isso que precisamos fazer”. A seguir, trechos da entrevista que ele deu ao Estado, momentos antes do desfile.

Looks da coleção de Ronaldo Fraga desfilada na 46ª edição da São Paulo Fashion Week Foto: Nelson Almeida/AFP
Sua nova coleção propõe uma comparação entre o conflito dos judeus e palestinos em Israel e a polarização política que vivemos no Brasil. Como chegou a esse paralelo?
Passei 40 dias em Israel no ano passado. Foi tempo suficiente para conhecer o país inteiro, que tem o território do tamanho de Sergipe. Ali está o epicentro da história da humanidade. Primeiro pensei em Jerusalém para criar um fio condutor desta coleção. Mas quando cheguei a Tel-Aviv fiquei totalmente encantado. A cidade é arborizada, cheia de laranjeiras carregadas, com galerias de arte a cada duas ruas. É lotada de gente e extremamente humanizada. Fica a apenas 100 quilômetros de Jerusalém, mas em uma cidade você sente que está 2000 anos atrás e na outra você se enxerga no futuro. De repente, entrei em um café e vi uma faixa com um texto em hebraico. Perguntei o que significava e me explicaram que ali, ao sentarem juntos um árabe e um judeu, a mesa recebia 50% de desconto. Comecei a olhar ao redor e percebi uma vida totalmente à parte da briga política e religiosa. Estavam ali casais heteros e gays, de árabes e judeus, vivendo de forma totalmente diferente do que a gente imagina. Antes de viajar, me disseram “cuidado com essa sua cara de árabe em Israel”, e eu nunca me senti tão seguro em um lugar. Claro que eles têm um estado militarizado, mas há ali algo que corremos o risco de perder no Brasil, que é a liberdade individual, as relações individuais - foi a partir dessa história que resolvi traçar o paralelo nesta coleção.

No começo do desfile, casais separados pela mesa onde foi servido um banquete se encontravam e se beijavam em frente aos fotógrafos Foto: Sebastião Moreira/EFE
Que tipo de lição essa reflexão pode nos trazer neste momento de extremismo político?
Acho que é importante voltar o olhar para lugares onde esses direitos de liberdade individual foram conquistados, onde essa história foi conquistada. E é uma conquista do civil, que vive à parte do movimento político.
Acha que poderia ser uma saída para nós?
Sim. Acho que estamos em guerra, e o mundo está em guerra mesmo, mas quando você olha para a guerra do outro, você não olha para a sua própria. Para mim, quem está em guerra é o Brasil. É o Rio de Janeiro, por exemplo. Olha a situação dessa cidade! Isso pode se espalhar. O País está indo por um caminho de milícia.
É uma coleção para falar da paz?
Mais ou menos. É uma coleção para falar de tolerância como um valor mínimo para o ser humano, a essa altura do campeonato. Um valor mínimo e urgente.
Você vê uma saída de unificação? Para juntar os “árabes e judeus” do Brasil, metaforicamente falando, pós-eleições?
Acho que nós só começamos essa guerra. Ganhe um ou outro, a máscara caiu, as portas do armário da intolerância estão abertas. O monstro está à solta e ele não vai ser enfiado de volta no armário no dia 29 de outubro, de um jeito nenhum. Estamos vendo um Brasil racista e homofóbico ganhar força. O que busquei com esse desfile foi colocar a conversa na mesa de jantar, porque acredito que é isso que precisamos fazer.
Qual é o papel político da moda?
Nosso papel enquanto homens do nosso tempo, e também enquanto estilista, é pensar na micro e na macro política e é também entender as diferenças. Dei o exemplo desse café na colecão, que é uma micropolítica, porque acho que temos que estimular esse tipo de atitude. E ficar muito atentos. Se estão atacando o diferente do seu lado, um dia pode chegar a sua vez.

Um dos looks da coleção do designer mineiro que foi quase toda trabalhada em jeans, o tecido mais democrático da moda Foto: Nelson Almeida/AFP

Jogando com elementos das culturas judaica e palestinas, Ronaldo estabeleceu um paralelo com a polarização e a intolerância vividas hoje no País Foto: Paulo Whitaker/Reuters