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Como seis cantoras brasileiras usam a moda para quebrar padrões

Letrux, Tássia Reis, Alice Caymmi, Maria Beraldo, Jup do Bairro, Lei Di Dai e o Trio Bolerinho falam sobre a construção da identidade por meio das roupas

Por Natália Guadagnucci
Atualização:
'A minha existência ajudou a construir o meu estilo', diz Tássia Reis Foto: Instagram/@tassiareis_

Foi com os sutiãs em formato de cone, criados pelo estilista Jean-Paul Gaultier, que Madonna tornou sua turnê Blonde Ambition ainda mais icônica. No Video Music Awards (VMA) de 2000, Britney Spears fez história ao arrancar seu terno brilhante, dando vez a um macacão justíssimo no tom de sua pele, cravejado por cristais. Lady Gaga certamente não teria causado o mesmo impacto quando surgiu não fossem seus looks inusitados, passeando entre o bizarro e o lúdico. O fato é que um figurino tem o poder de tornar inesquecível a performance de uma artista, ajudando a construir sua identidade, assumir diferentes personagens e a contar histórias. 

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Para Maria Beraldo, que acaba de lançar seu primeiro álbum solo, Cavala, a imagem teve papel fundamental para que ela pudesse encontrar seu lugar no mundo. “Para a minha construção, foi muito necessário me apropriar da minha imagem. Essa busca pela liberdade se juntou ao meu processo de sair do armário, de encontrar o que eu sou”, conta a cantora e clarinetista. “O que eu procuro na maneira de me vestir é encontrar algo que seja meu e fora desse padrão de feminilidade que é imposto”. 

Seja nos palcos ou nas ruas, Maria trilha o caminho da androginia, ora flertando com hot pants, ora usando blazers masculinos. “Algumas pessoas não sabem se eu sou homem ou mulher dependendo da roupa que eu uso. Gosto de provocar essa reflexão usando coisas diferentes, transitando entre o considerado feminino e o masculino”, define. 

No show de 'Cavala', Maria Beraldo usa hot pants, blusa de látex, botas Dr. Martens euma crina presa aos cabelos Foto: Aline Belfort/Divulgação

Ao lado da irmã Marina e da amiga Luisa Toller, Maria forma também o trio Bolerinho, que divulgou em julho seu primeiro álbum de inéditas. Dentro do grupo, a moda ajuda a dar forma à evolução das integrantes dentro e fora da música. “De quando a gente começou a tocar até agora, a gente se transformou muito. No começo a gente se vestia mais como menininha, bastante vestido. Hoje em dia a gente já não se identifica mais com isso. Eu sou mãe, e entrei super nessa questão de gênero. Não gosto do 'emprincesamento', da mulher como objeto de desejo, de se arrumar para um homem ter desejo”, explica Marina Beraldo. Hoje, elas optam por camisas e calças de alfaiataria e tomam como referência a estética de figuras icônicas da América Latina, como a pintora mexicana Frida Kahlo. 

Maria endossa o coro, e conta que até um corte de cabelo serviu para que se sentisse mais “ela mesma”: “Eu tinha o cabelo cacheado na altura do ombro, e uma cara muito angelical; quando cortei o cabelo mais curto e estranho, me identifiquei”. Foi assim também com Leticia Novaes, a Letrux. Junto com seu primeiro disco solo, o elogiado Letrux Em Noite de Climão, lançado no ano passado, ela construiu uma imagem poderosa, e adotou o vermelho como sua cor-símbolo. “Eu tinha o vermelho na cabeça por que é um álbum apaixonado, dramático”, disse ela, que fazia parte do Letuce, dueto com Lucas Vasconcellos que chegou ao fim em 2016.

O trio Bolerinho é formado por Maria Beraldo, Marina Beraldo e Luisa Toller Foto: Pétala Lopes/Divulgação

“O feminismo me ajudou com várias questões; a mais forte delas foi cortar meu cabelo muito curto e parar de alisar, algo que eu fazia num processo automático insano. Me libertei e foi a melhor coisa. Ainda tenho outras questões para me livrar, mas vamos em frente”, completa. Mirando no estilo tomboy da atriz Tilda Swinton, Letrux tropicaliza a androginia com estampas geométricas, maiôs decotados e modelagens minimalistas – muitas das peças garimpadas em brechós. 

Letrux escolheu o vermelho como cor-símbolo de sua nova fase solo Foto: Sillas Henrique/Divulgação

Os achados vintage, aliás, ocupam boa parte dos guarda-roupas – e corações – de muitas das cantoras da nova geração da música brasileira, dividindo espaço com marcas e estilistas independentes. No closet de Letrux, entram nomes como o carioca Guto Carvalho Neto, conhecido por sua alfaiataria casual, e a Aro Swimwear, etiqueta de biquínis descolados, também do Rio. 

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Encontrar roupas em lojas convencionais, porém, não deixa de ser um privilégio. Para quem tem corpos acima do manequim 46, a oferta de peças interessantes cai e os preços sobem. “É difícil achar roupas plus size legais. Tive que começar a desenhar e criar as minhas próprias roupas para usar o que eu queria”, conta Lei Di Dai, uma das principais representantes brasileiras do dancehall, gênero típico da Jamaica. Para a cantora, que se prepara para lançar seu novo álbum, Crazy Bass, as regras da moda só tendem a oprimir as mulheres gordas.

“Quero mostrar que é possível sim usar cropped, mini saia, usar o que a gente quiser”, diz. “Lei Di Dai é two-piece”, define ela, em referência aos conjuntos de top e saia ou shorts que já se tornaram visual-chave de seu estilo, que mixa streetwear a tecidos brilhosos. Em um futuro nem tão distante, a vontade da paulistana é de criar a sua própria coleção – a exemplo do que já fizeram as cantoras Tássia Reis e Jup do Bairro, que é também performer e backing vocal de Linn da Quebrada. 

Lei Di Dai é fã dos conjuntos de cropped e saia, misturados a tênis e acessórios descolados Foto: Miguel Thomé/Divulgação

Tássia Reis fez até um curso técnico de Design de Moda antes de entrar para o meio musical. A moda foi seu primeiro acesso à arte: “Estudei em escola pública, então a vivência é outra. Durante o curso, pude estudar os períodos e os movimentos de arte, então foi algo muito rico”. A criação de sua marca, a Xiu, veio como uma forma de dar continuidade à tradição que tinha com a mãe, de encontrar referências em revistas e criar as suas próprias versões das roupas. “Demorei para ter acesso às coisas da moda, tênis da moda. Até que eu percebi que me saía muito bem me vestindo de um jeito alternativo. Com grana, você compra Off-White, Gucci, mas isso não é tudo”, resume.

A segunda coleção da Xiu vai ser lançada ainda neste mês, reunindo vestidos de noite, camisetas e moletons. Ao lado de Alt Niss, Drik Barbosa, Karol de Souza, Mayra Maldjian, Stefanie Roberta e Tatiana Bispo, Tássia Reis integra o grupo de hip-hop Rimas & Melodias, que também encara a moda como assunto de máxima importância. “A gente sempre usa looks coordenados. Temos até um grupo no Whatsapp para pensar no styling, levamos muito a sério”, conta.

Tássia Reis é fundadora da marca Xiu, focada em streetwear Foto: Instagram/@tassiareis_

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Jup do Bairro, que já participou duas vezes da Casa de Criadores – a primeira em uma perfomance com Linn da Quebrada e a segunda durante o último desfile de Isaac Silva, com um elenco 100% transgênero – também decidiu desenvolver a própria marca pela falta de opções no mercado plus size. “Sempre senti falta de peças que me contemplassem. É difícil encontrar uma moda sem gênero que não seja roupa masculina em tamanhos pequenos. Queria ir além do jeans reto, da camiseta básica”, conta ela.

Com sua No Pano, ela pretende colocar um pouco de sua vivência e personalidade em tecidos que funcionem para todos os corpos. “As marcas precisam ter um estalo de que 46 não é plus size. Quem elas querem vestir? Tomar partido de uma moda sem gênero feita em tamanhos reais é um ato político, é se posicionar”, define a cantora, cujo estilo passa longe do comum. Em seu Instagram, Jup gosta de criar diferentes moods, em que se veste dos pés à cabeça seguindo determinado estilo – do gótico ao cowboy.

A tendência da roupa genderless já atingiu até as grandes grifes internacionais, que começam a unir seus desfiles masculino e feminino e apostar cada vez menos em rótulos. O que Jup ressalta é que a afirmação do gênero pode ser fundamental para a população trans. “Para ser validada, a mulher trans ainda precisa estar com uma roupa extremamente feminilizada, maquiada”, lembra ela. “A imagem ainda é uma forma de proteção muito grande”. 

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Jup do Bairro criou sua própria marca, a No Pano Foto: Mariana Smania/Divulgação

Para Alice Caymmi, as roupas que passeiam entre gêneros facilitam o ato de se vestir para quem não cabe em padrões – seja de beleza, seja de feminilidade. Desde o álbum Rainha dos Raios, de 2014, até Alice, lançado este ano, seu estilo passou por uma transformação tão marcante quanto sua música. “Gosto de construir novos personagens, é um processo muito natural para mim”, diz ela, que saiu de uma estética dark, mais pesada e em preto e branco, para um momento pop, com peças neon e de tule. “Nunca me encaixei no feminino da moda”, afirma Alice, que tem Rihanna como sua principal inspiração.

“Essa estética de hoje de juntar o feio a algo chique foi ela quem popularizou, e é algo que me atrai muito”, conta. Dessa mistura, que gera uma espécie de confusão visual à primeira vista, é que deriva o novo. “Eu gosto muito da bagunça com relação à imagem. Aquilo que é bonito, mas estranho, de achar sensual alguém que é feminino, andrógino”, concorda Maria Beraldo. “O caminho da liberdade é um caminho de rompimento dos padrões”.

Alice Caymmi lançou seu terceiro álbum, 'Alice', neste ano Foto: Instagram/@alicecaymmi
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