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Como ensinar sobre a morte a uma criança?

Nós, adultos - apesar de nosso desconforto com o tópico - devemos oferecer respostas verdadeiras e claras ao que é inimaginável e, de certo modo, inexplicável

Por Zsofia McMullin
Atualização:

A tarefa na pré-escola era simples: faça um desenho de sua família. A professora prendeu 15 pedaços de papel no quadro do lado de fora da sala de aula quando os desenhos foram terminados. Havia famílias grandes e famílias pequenas. Famílias com bichinhos de estimação, com bebês, e famílias que pareciam minúsculos extraterrestres.

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Nossa família, desenhada num pedaço de papel verde néon com um marcador laranja, parecia a família convencional de bonecos palitos. Mamãe de um lado com o cabelo espetado, Sam no meio, minúsculo, e papai do seu outro lado, careca, e um pouco mais alto que os outros dois. Acima de nossas cabeças dois globos pairavam, espirais de linhas do marcador laranja, com notas explicativas do professor que Sam deve ter ditado: "Minha bisavó". E acima do outro globo: "Vovô, o papai do meu papai. Ele é, especial para mim".

Tanto a bisavó - minha avó, a quem chamávamos "Dedi" - como meu avô estavam mortos havia mais de dois anos. Sam esteve com os dois um punhado de vezes quando era bebê, depois mais tarde, quando estava com um ano, depois talvez mais uma vez quando tinha dois anos e meio. Mas ao que tudo indica, seus globos persistiram em sua mente e acima de nossa família.

Nossa família, desenhada num pedaço de papel verde néon com um marcador laranja, parecia a família convencional de bonecos palitos Foto: Cortesia do autor

Cada pai ou mãe tem alguma coisa nojenta que não consegue suportar. Para mim, era a protuberância do umbigo. Deem-me ao primeiro cocô preto, ou vômito, ou sangue de um bebê - tudo bem. Mas aquele pedaço de pele morta pendendo do umbigo do meu bebê me fez sair gritando pelo quarto. Essa foi, provavelmente, a última vez em que eu me dei ao luxo de não lidar com uma coisa só porque ela me deixava desconfortável.

Houve uma porção de mortes em nossa família e círculo de amigos nos dois últimos anos. Nós protegemos Sam da maior parte disso - explicamos que alguém morrera, mas nunca o levamos a um funeral nem discutimos muito sobre o que estava se passando quando ele estava no recinto. Respondemos suas perguntas, mas tentamos não dar muita importância à morte diante dele. A vida continua, afinal.

Imagino que seja normal crianças ficarem curiosas sobre a morte, assim como são curiosas sobre outros grandes mistérios da vida: Como eu entrei na tua barriga? Como eu saí? Por que o céu é azul? O que é a neve? Isso encaixa no meu nariz?

E nós, adultos - apesar de nosso desconforto com o tópico - devemos oferecer respostas verdadeiras e claras ao que é inimaginável e, de certo modo, inexplicável. Não querendo confundir a inevitabilidade da morte e subscrever alguma doutrina religiosa, nunca dissemos a Sam que alguém foi para o céu, ou que está no céu, ou vivendo em alguma outra realidade alternativa. Usamos as palavras - doença, morte, para sempre -, mas nossas explicações sobre o que isso de fato significa nos deixavam aturdidos.  Defina "nunca"ou "saudade" ou que significa perder alguém para uma criança de 4 anos e se descobrirá dizendo coisas como "Dedi sempre estará no teu coração", e "vovô está sempre conosco". No que isso é diferente de viver no céu? Não sei bem.

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No processo de tentar explicar a morte a Sam, eu também precisei crescer. Este não poderia ser meu momento umbigo. Eu não poderia fugir - tinha de estar lá para dar conforto, respostas - para ele e, de certa forma, para mim. Tinha de tornar a morte uma coisa tranquila. Preciso continuar deixando a morte ser uma coisa tranquila, porque mesmo agora que estas perdas se tornaram dores surdas, distantes em nossos corações adultos, elas são muito mais vivas, por assim dizer, para Sam.

A morte é um tópico de todo dia em nossa casa. Geralmente, todos os soldados de brinquedo de Sam morrem em batalha. Há um hospital de campo dos soldados de brinquedo onde capitães e cabos "morrem só um pouquinho", e médicos que trabalham heroicamente para salvá-los. Sam diz que me amará mesmo quando ele morrer (nenhuma palavra sobre o que haverá quando eu morrer). Nós revemos inúmeras vezes a página de seu livro favorito sobre um rei húngaro medieval onde o rei, segundo a lenda, envenenado por figos por sua esposa ardilosa, jaz em seu leito de morte, levemente verde. "Por que ele comeu os figos? Por que ele ficou doente? Podemos conseguir mais informações sobre a sua morte? Há um vídeo sobre ela no teu iPad?"

E, claro, os que ele realmente conheceu e que morreram também surgem durante nossas conversas à mesa de jantar. "Sinto falta de Dedi", ele diz às vezes, ou "Lembra que o vovô tinha um tapa-olho? Por que ele tinha isso?". Assim nós falamos sobre o que nossos mortos fizeram em suas vidas, em sua doença, em sua morte. Não é uma conversa alegre, mas parece necessária mesmo com suas respostas incompletas, seus enredos confusos, seu final incerto.

Ocasionalmente, tento estimular Sam na direção da vida quando a morte surge. E todos os soldados que se recuperaram? Isto não será apenas um ferimento ruim e não uma sentença de morte? Há remédios, sabe, que podem ajudar. E este rei aqui, ele fez muitas coisas grandiosas quando estava vivo. Construiu castelos! Uma biblioteca! Trouxe a Renascença para a Hungria medieval, escura! Lembra quando a Dedi dava beijos nos teus pés e fazia cócegas.

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A morte é uma história melhor, um mistério mais envolvente. Eu ainda quero sair correndo do quarto quando ela surge, mas aprendi a ficar e, talvez, não apreciar, mas respeitar sua natureza imprevisível e o fascínio que ela exerce em meu filho de quase cinco anos. Sei que, como muitas outras fases da infância, esta também passará.

Meu marido guarda o desenho da família de Sam em sua cômoda em nosso quarto de dormir e eu a vejo todos os dias: nós três de pé, lado a lado, com os seres misteriosos acima de nós, pairando perto de nós por mais algum tempo. E admito que sua presença traz um certo conforto.

Tradução de Celso Paciornik

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