Bordados feitos pela mãe de Emicida serão destaque da LAB na SPFW

Peças com aplicações da artista Jacira Roque Oliveira falam sobre samba e até mesmo sobre as ações de Doria para apagar grafites em São Paulo

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Por Gabriela Marçal
Atualização:
A artista plástica Jacira Roque Oliveira, 53 anos Foto: Amanda Perobelli/ Estadão

Não se engane com o título dessa reportagem. Jacira Roque Oliveira é muito mais que a mãe do Emicida ou do Leandro, como ela chama o filho. Aos 53 anos, ela é a artista plástica que produziu os patchworks que darão o tom das peças conceituais no desfile nesta sexta-feira, 17, da LAB, grife criada pelos rappers Emicida e Fióti em parceria com o estilista João Pimenta, na SPFW.

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Jacira tem uma história de vida de superação. Mas nunca se conformou. Com nada. Durante muitos anos foi obrigada a fazer tratamentos psiquiátricos por seu muito “questionadeira”; há 25 anos faz análise por vontade própria.

Aos seis anos de idade foi deixada pela mãe em um convento, onde era agredida física e psicologicamente. Conheceu o racismo quando uma freira disse que ia cortar “os cabelos ruins”. “Até então eu não sabia que meu cabelo era ruim.” Passou a desconfiar de todas as pessoas quando descobriu que sua mãe não tinha sido enganada. “Ouvi de minha mãe: ‘você não queria ir para a escola?’.”

Peças com aplicações de Jacira que serão desfiladas nesta sexta, 17, na LAB Foto: Raphael PS/ LAB

Após se aposentar por causa do lúpus (doença autoimune que afeta, principalmente, pele, articulações, rins e cérebro), ela conheceu a depressão. Percebeu que estava se afundando em remédios como Diazepam e fluoxetina que a deixavam mais triste e ela não entendia qual era a função. Há 20 anos, encontrou no bordado, ao estilo patchwork, o caminho para deixar de tomar psicotrópicos e a distração durante as sessões diárias de hemodiálise, que faz pois não tem mais os rins.

E foi no trabalho de dona Jacira que Emicida, Fióti e João Pimenta viram o fio condutor para esta coleção da LAB. Em dezembro, ela recebeu o convite: “eu quase os esganei! Porque eles acham que bordado surge repentinamente”. Até o momento que esta reportagem estava sendo apurada, a artesã tinha produzido bordados para duas jaquetas, uma calça, uma bermuda e um colete. Todas as aplicações foram feitas durante a hemodiálise.

Jacira nos recebeu em sua casa na região do Jardim Tremembé, na Zona Norte de São Paulo, para contar sobre a participação do seu trabalho na coleção da LAB e sua relação com o patchwork.

Jacira é autora dos patchworks das peças mais conceituais que serão desfiladas hoje na LAB Foto: Amanda Perobelli/ Estadão

Em muitassituações você deve ser reconhecida apenas pelo ‘título’ de mãe do Emicida. Como você lida com isso?

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Agora eu não respondo mais. É chato. Às vezes, algum amigo vai me apresentar e ao invés de falar Jacira, diz "sabe de quem ela é mãe?". Eu já olho! [Nesse momento, Jacira reproduz a expressão aborrecida e o olhar de canto dos olhos.] Você perde o nome! E não sou só eu; eu perco, a esposa perde, todas nós. Quando a pessoa fala mãe do Emicida, eu digo "pronto! Agora fiquei duas vezes invisível!"

Eu não sou mãe do Emicida. Emicida é uma criação do Leandro. Eu sou a mãe do Leandro. Então, o Emicida, quando muito, é meu neto.

Qual foi a sua influência na estética da LAB?

O Leandro tem vários trabalhos meus na casa dele e já tem algum tempo que ele diz "o nosso trabalho se parece". Já o Evandro [o Fióti] levou um tempo mais para 'sentir'. Ele falava para mim: “eu não entendo o que você faz”. Mas desde o ano passado ele está buscando entender o bordado que eu uso para contar histórias, seja a da região que moro, a minha biografia ou a diáspora africana. Esse trabalho é a minha voz.

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Como surgiu a sua parceria com a LAB?

Na época do convite, eu estava com excesso de cálcio o que me deixava com dificuldade de mexer as mãos e de caminhar. Pensei: "é verdade que esse homem da Vila Madalena, que só faz essas roupas bonitas, vai querer um bordado meu?" E ele ficou emocionado quando levei os meus bordados. No começo eles queriam duas peças. O João me perguntou quanto tempo eu demorava para fazer uma peça, eu disse: “sei lá. Tem um casaco que estou fazendo há seis anos, outro há quatro anos, outra peça há dois anos”. Demora muito. Mas a primeira peça para o desfile eu fiz em duas semanas.

O João desenhou alguma peça para você?

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Não. Eu não trabalho assim. Eu não sigo nem o que eu desenho. Ele me pediu uma história, eles queriam falar sobre o samba. Fui recolher os livros que eu tenho sobre samba e eu tinha acabado de fazer um curso sobre diáspora da música. Nesse momento, os meus professores falavam que o samba não é africano. Da África veio o conceito, como a batida, e o fundamento, como as influências religiosas. Ao falar sobre o samba tem que ter o devido respeito, então resolvi fazer isso contando uma história, como um mito, porque eu não tenho autoridade de pesquisadora.

Ouço muito Maria Bethânia, em uma canção ela fala do samba que vivia dentro do peito do passarinho no fundo do mar e eu comecei por essa ideia. Um ponto no fundo do mar. Primeiro, desenvolvi uma história sobre o início do mundo. Essa primeira peça começa com um pingo trazido pela ventania de Iansã, ele se mistura com as rosas de Iansã e vira um pingo vermelho, se torna uma rosa dos ventos, depois, rosa do povo e termina como o samba que nasce na periferia.

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A segunda peça desmembra essa história e conta, por exemplo, que os colonizadores do Brasil iam para a Bahia, Maranhão, Recife e chamavam tudo de batuque. “O que esses negros tanto batucam?!” Mas não era, nem é assim. Então, a segunda peça também diz respeito ao maracatu, tem os cabeções de Olinda.

Eu estava bordando a segunda peça quando o prefeito tomou posse e começou com aquelas histórias de apagar as coisas dos muros. Aquilo foi muito pesado para mim. Então, na segunda jaqueta eu começo falando de maracatu e depois passo para esse tema: as coisas que estavam aí e se perderam. Tive como influência uma música da Marisa Monte: ‘apagaram tudo e pintaram tudo de cinza’. “A palavra no muro ficou coberta de tinta” é uma frase que está no segundo casaco, que é branco.

Trabalhei sozinha nessas peças. Mostrei a minha loucura. Um dia, cada um há de desenvolver o seu próprio delírio seja no bordado ou no falado. O importante é colocar a arte para fora.

Jacira bordou as peças que serão desfiladas na SPFW durante as sessões de hemodiálise Foto: Amanda Perobelli/ Estadão

Como você imagina que se sentirá durante o desfile da LAB?

Eu não sei. Se eu não enfartar... Está acontecendo agora em 2017 uma coisa que eu estou esperando há 50 anos: o reconhecimento da minha pessoa. Quando eu ver essas roupas no desfile não será o meu bordado, será a minha fala. Mesmo sem dizer nada, elas vão dizer muito. Principalmente, porque não é uma encomenda. Tudo que há, de ponta a ponta, fui eu que escrevi, eu que bordei, eu que fiz a história.

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Ainda fico esperando. Parece que no último momento vão dizer: “dona Jacira, trocamos as suas peças por outra coisa”. Perguntei muito isso para o Evandro, se não corria o risco dos meus bordados não serem usados.

Cheguei a ascensão do meu bordado com 53 anos e por meio dos meus filhos. Quer dizer, eu os eduquei e agora eles estão me educando.

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