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Voz contra o preconceito

Militante respeitada, a prostituta Gabriela Silva Leite vem lutando pelos direitos da categoria há anos

Por Ciça Vallerio
Atualização:

Mais do que a Bebel, personagem da atriz Camila Pitanga na última novela da Globo, Paraíso Tropical, quem deveria receber os holofotes é uma outra prostituta, mas da vida real. A paulistana Gabriela Silva Leite trabalhou em diversos bordéis do País até se tornar a militante reconhecida mundialmente. Sempre em defesa da categoria, liderou a primeira passeata de prostitutas, na São Paulo de 1979. Foi um escândalo. Anos depois, fundou a Rede Brasileira de Prostitutas, e depois a ONG Davida, da qual é diretora. E coordena a Daspu - grife queridinha dos modernos, que já ganhou páginas em jornais franceses e teve seus desfiles noticiados por agências internacionais. Aos 56 anos, Gabriela se aposentou do ofício de prostituta para intensificar a militância em prol das colegas. Sua luta agora é junto ao Congresso Nacional, para a regulamentação da profissão, com piso salarial, carga horária, assistência social, aposentadoria, entre outros direitos. Seu trabalho também está direcionado à prevenção de HIV/Aids, com apoio do Ministério da Saúde. Foi ainda a mentora intelectual do jornal Beijo da Rua, que publica a cada dois meses junto com seu atual companheiro, o jornalista Flavio Lenz. É distribuído por correio para prostitutas, clientes, ativistas, gestores governamentais. A versão eletrônica está no site www.beijodarua.com.br. A extensa jornada de Gabriela fez nascer o livro Eu, Mulher da Vida, de sua autoria, mas a edição está esgotada. Agora, a pedido da Editora Objetiva, ela corre contra o tempo para entregar o manuscrito de seu novo livro, cujo título será Mulher, Mãe, Avó e Puta. Há uma razão para tal: ela tem duas filhas - uma de 36 anos, que é professora de Português, e a mais nova, de 29 anos, que mora no interior de São Paulo. Ah, claro, Gabriela se orgulha de sua neta que, nas palavras da avó, é uma garota de 15 anos, superlegal e supermoderna. Baseada no Rio de Janeiro há 25 anos, a prostituta e militante resolveu ficar na cidade maravilhosa depois de ter rodado por muitos bordéis espalhados pelo Brasil. Ganhou a vida, por muito tempo, na Vila Mimosa, antigo (e famoso) reduto carioca de meretrício. Com uma agenda atribulada, Gabriela só conseguiu conversar com a reportagem do Feminino por telefone - quando retornou ao Rio, depois de ter participado como palestrante de um seminário em São Paulo. A entrevista foi realizada horas antes de viajar para outro encontro. Aliás, seu nome verdadeiro é Otília. Ela adotou Gabriela em homenagem à famosa personagem de Jorge Amado. Você ajudou a organizar o Primeiro Encontro Nacional de Prostitutas, no Rio de Janeiro, em 1987. Foi daí que surgiu a idéia de criar a Rede Brasileira de Prostitutas? Na época, quando nos reunimos, a violência contra as prostitutas era forte. Hoje ainda tem muita agressão, basta lembrar do caso da doméstica Sirlei Dias, que foi espancada porque os agressores imaginaram que se tratava de uma prostituta. Muita gente acha que somos agredidas por clientes, mas são exceções que acabaram reforçando essa idéia. No passado era muito pior, sofríamos com a polícia que chegava batendo e nos achacando. Desse encontro que você citou, veio a idéia da Rede, a fim de intensificar as discussões sobre as questões da nossa profissão. E como nasceram o jornal Beijo da Rua e a ONG Davida? Depois da passeata em São Paulo, em 1979, percebi o abandono ao qual estávamos submetidas. Comecei a ver que daria para fazer alguma coisa. Também existia a questão da violência. Já morando no Rio, uma vez escutei que prostituta só saía no jornal nas páginas policiais. E foi também no Primeiro Encontro Nacional de Prostitutas que todas nós decidimos ter um jornal, editado desde 1988 pelo Flavio, meu atual companheiro. Depois passei a acompanhar o surgimento de várias associações de prostitutas pelo Brasil e senti que estava na hora de termos uma ONG representativa. Em 1992, surgiu a Davida, com enfoque em ações nas áreas de educação, saúde, comunicação e cultura, de atuação local e nacional. Com tudo isso, começamos a ter mais visibilidade e saímos um bocadinho do escuro. Quando esteve aqui em São Paulo, no mês passado, como palestrante convidada no seminário promovido pelo Itaú Cultural, a senhora aproveitou para visitar pontos de prostituição. O que mais chamou sua atenção? A figura do gigolô, que está acabando, ainda é muito forte em São Paulo. Isso me deixou triste porque eles as exploram e as prostitutas se transformam em vítimas da violência deles. Só um olhar treinado como o meu para perceber como isso é forte nas ruas paulistanas. Por isso que as prostitutas de São Paulo não têm representatividade, muito menos uma ONG tão atuante como a Davida? Os cafetões são um dos responsáveis, mas como a cidade é enorme, a prostituição fica muito espalhada. Razão pela qual se torna muito difícil juntar todo esse povo. Bem diferente do que ocorre no Rio, onde existem regiões próprias para tal, o que facilita a união das mulheres e fortalece o movimento carioca. Quando estive em São Paulo, também fui visitar o entorno da USP e conversei com as meninas que fazem ponto ali. Estavam bravíssimas porque os moradores estão pressionando para que saiam de lá, fotografando placas dos carros que param. Isso é inconstitucional, por ser uma violação dos direitos humanos, mas elas não sabem como podem se defender. Tempos atrás aconteceu o mesmo no Rio, mas escrevi um artigo no Jornal do Brasil e essa patrulha parou. Foi por ter violado os direitos humanos que a ONG Davida está processando os espancadores da doméstica Sirlei? Isso mesmo. Entramos com uma ação contra esses jovens, de reparação de danos morais. Queremos dar uma lição, pois esse tipo de agressão não pode ficar impune. Se ganharmos, o dinheiro deles vai ajudar a financiar a pesquisa sobre a violação de direitos humanos das prostitutas, que será realizada em 11 capitais brasileiras. Pretendemos capacitar prostitutas para que elas próprias façam o levantamento de histórias de violação, porque é muito difícil captar depoimentos. Geralmente, as putas têm medo de denunciar agressores, ainda mais se for um policial. A grife Daspu surgiu para ajudar a financiar a ONG Davida por falta de patrocinadores? Ninguém quer associar a marca de uma empresa a uma causa nobre, porém, voltada a prostitutas. Se fosse uma ONG que trabalhasse com juventude, seria muito mais fácil (risos). Por causa dessa dificuldade, surgiu a idéia de vender roupas para angariar dinheiro e bancar nossos projetos. A projeção nacional da grife veio com a ação movida pela Daslu contra a gente, acusando a Daspu de denegrir a imagem da marca de luxo. Claro que a inspiração veio daí e quem teve a grande idéia foi o designer Sylvio de Oliveira. A Daslu desistiu desse processo, mas antes de arquivá-lo, fizeram um grande favor à ONG. Como andam as vendas da grife Daspu? Hoje exportamos camisetas Daspu, criadas por Sylvio, para Zurique, Suíça. Há roupas em lojas paulistas e cariocas. Em janeiro, pretendemos lançar uma linha de lingerie. A Galeria Lafayette (tradicional endereço de compras em Paris) mostrou interesse em vender nossas peças. Já temos visibilidade. Nossos desfiles são cobertos por agências de notícias internacionais. Para cada coleção, contratamos um estilista. Só que, desta vez, é uma prostituta que gosta de desenhar quem está criando os novos modelos. Como o Projeto Daspu está crescendo, estamos nos estruturando melhor e vamos fazer cursos para aprender a administrar o negócio. A senhora não tem o menor pudor de se tratar como puta. Tanto é que o título do seu próximo livro será Mulher, Mãe, Avó e Puta. Por quê? Gosto muito da palavra puta. Não gosto de nomes politicamente corretos, pois escondem o preconceito. Acho o termo "trabalhadoras do sexo" detestável. Em junho deste ano, participei como palestrante do Forum Latino-Americano e Caribenho de Luta contra a Aids, em Buenos Aires, Argentina, realizado pelos governos dos vários países que compõem a América Latina e pela Unaids (escritório da ONU para Aids). Como as latinas detestam o termo "puta", quando fui apresentada ao público, evitaram falar "puta" e "prostituta", usando a expressão "profissional do sexo". Fiquei irritadíssima com isso e, quando peguei o microfone para falar, mostrei o preconceito imenso dessa atitude, repetindo, propositalmente, várias vezes a palavra "puta" no auditório. (risos) Em uma cena da novela Paraíso Tropical, Bebel gritou na rua: "ó, prostituta é gente!" Ainda existe muito preconceito? Embora hoje sejam até mais respeitadas, existe muito preconceito, a ponto de não terem direito a assistência social. Mas sempre lembro que as prostitutas são muito mais honestas do que mulheres que estão atrás apenas de marido rico. É essa cultura babaca do casamento de negócio. O que falar daquelas que suportam seus maridos apenas para ter uma suposta estabilidade? A senhora é uma das poucas a dizer que se tornou puta por opção. Por que escolheu essa profissão? Fazia Sociologia na USP (Universidade de São Paulo) e andava muito pelos bares da vida. Na época, não queria participar do radicalismo da luta armada. Vivi a revolução sexual, com o surgimento da pílula, e passei a descobrir cada vez mais o sexo. Vinha de uma família de classe média baixa e superconservadora. Com o pessoal do teatro, discutia muito sobre sexualidade. Estudava à noite e trabalhava como secretária da Shell, quando resolvi viver a noite, pois gostava muito. Estava de saco cheio de andar de ônibus e detestava levantar cedo para trabalhar. Parei de falar sobre sexualidade e parti para a ação, queria conhecer esse mundo. No começo foi dificílimo, mas não larguei mais. Comecei a ganhar a vida como prostituta aos 21 anos, numa boate. Mas como detesto som alto, ambiente escuro e fechado, fui parar em prédios de prostituição no centro de São Paulo. Aprendi a não ter gigolô, e não quis saber de trabalhar na rua. Não me sentia segura de entrar no carro de um desconhecido ou ficar à mercê da violência policial - e, hoje, desses jovens que se sentem no direito de espancar prostitutas. Sempre preferi a segurança dos bordéis. Embora sejamos obrigadas a viver nesse mundo marginal, nunca me envolvi com drogas. Minha história é com cerveja e cigarro. Por isso, nunca me meti em frias. Assim, fui vivendo da melhor maneira possível. Quando você se aposentou? Há mais de 10 anos, quando intensifiquei a militância e senti que precisaria optar por uma atividade ou outra. Não estava conseguindo fazer as duas coisas ao mesmo tempo. Mas não foi fácil escolher. Apesar de ter trabalhado sempre na baixa prostituição, aquela mais pobre, que não tem nada a ver com putas de luxo, foi difícil largar o meu trabalho. Nessa época engordei, fiquei imensa, de tanta angústia, porque gostava do que fazia. Só sei uma coisa, ganhava mais na vida do que como militante.

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