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Volta por cima

Um contingente de mulheres invisíveis faz mais do que posar nua ou exibir um sorriso tolo em comerciais de cerveja

Por Vera Fiori
Atualização:

Na terra de celebridades instantâneas, mulheres divorciadas e, na maioria dos casos, provedoras do lar não desfrutam de uma imagem glamourizada. São apenas números frios e sem rostos nas pesquisas do IBGE. Vejamos: o número de mulheres chefes de família cresceu 79% em dez anos, saltando de 10,3 milhões, em 1996, para 18,5 milhões em 2006. Mesmo as casadas estão assumindo as rédeas da família. Este percentual saltou de 9,1%, em 1996, para 20,7% no ano passado. Segundo o instituto, duas principais hipóteses podem explicar o crescimento continuado desse tipo de arranjo no momento atual: um aumento de "poder" por parte das mulheres em suas famílias ou o desemprego dos homens. Portanto, aí estão as pesquisas para desbancarem Darwin, o patrono da teoria evolutiva, para quem o homem era mais inteligente, corajoso e competitivo do que a mulher. Pagando um alto preço pela emancipação, como anda o emocional dessas provedoras? A web designer Marta Mendes (nome fictício), de 40 anos, roda 75 km de carro por dia, dá expediente em dois empregos, monitora a casa pelo telefone e, quando chega ao lar, quer mais é vestir o pijama e cair na cama. Separada há cinco anos, com duas filhas pré-adolescentes, resolveu no início deste ano abrir um pequeno negócio: uma loja de produtos naturais. A rotina, como conta, é puxada: - Como é preciso esperar a massa fermentar para repartir o pão, mantive meu emprego, que já era um tanto puxado, com plantões em fins de semana e feriados. Desde então, minha rotina tem sido mais ou menos essa: acordo às 6 ou 7 horas da manhã (dependendo se as crianças estão comigo ou com o pai), as levo até a escola e depois vou para a loja, onde fico até as 12h30. Almoço com as meninas ou no meu emprego, onde meu horário de saída varia de 19 a 22 horas. Saio e vou direto para o supermercado. Cinema, teatro, barzinhos, nem pensar, só nos fins de semanas, quando as meninas vão para a casa do pai, se não tenho plantão e se não estou morta de cansaço. O depoimento acima confirma, em parte, a insatisfação das divorciadas. Dissertação de mestrado feita em 2000 pela psicóloga Luciana Grzybowski, doutoranda pela PUC/RS, concluiu que mulheres divorciadas com filhos sob sua guarda estão abaixo dos níveis de satisfação esperado nas áreas profissional, psicológica, afetivo-sexual, parental e de apoio social. Apenas no seu relacionamento com os filhos apresentam contentamento - 98,1% do total. Outro ponto que chama atenção é o fato de estas mulheres não desejarem se arriscar em relações incertas, valorizando a estrutura familiar tradicional. No ano passando, Luciana direcionou a sua tese de mestrado para a participação de pais separados na rotina diária e educação dos filhos. Foram formuladas perguntas para 234 homens e mulheres com filhos entre 6 e 12 anos. "Como a maioria das mães tem a guarda dos filhos, estas são muito mais envolvidas nas práticas educativas, enquanto que os pais limitam-se às atividades de lazer." Numa outra etapa da pesquisa, foram ouvidos, separadamente, grupos de pais e mães de diferentes situações sociais e faixas etárias. Segundo a psicóloga, há casos de pais completamente ausentes, mas há também aqueles que querem se envolver, porém são tolhidos pelas mulheres. "Estas não se colocam na posição de vítimas sobrecarregadas: afirmam que preferem educar as crianças a seu modo." O lado negativo é que o conflito conjugal interfere na educação das crianças. Ainda, segundo Luciana, quem tem um salário maior - as mulheres, inclusive - se acha no direito de dar a última palavra em relação aos filhos. Mais deveres do que direitos Sobrecarregadas, estressadas, sem tempo para a vida pessoal, as mulheres que não têm a sorte de contar com um ex participativo engolem goela abaixo o velho e batido ditado que diz: quem pariu que embale. Em artigo intitulado "Padecer no Paraíso", Maria Berenice Dias, desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e vice-presidente nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família - IBDFAM, observa que a obrigação do pai não se restringe ao pagamento de alimentos. Lembra que há um leque de encargos que não são mensurados monetariamente: - Separado o casal, o pai, na maioria dos casos, nem ao menos divide os deveres de criação e educação do filho, pois raramente reconhece sua responsabilidade de acompanhar o seu desenvolvimento ou dar-lhe alguma orientação. De forma freqüente, não assume qualquer ônus e sequer exerce a obrigação de visitas. Não há nenhum meio legal de coibir as omissões paternas. Sim, há pais que pedem a guarda dos filhos, mas estes casos são a exceção. A advogada Carla Falcone Bragaglia, do escritório Bragaglia, Santi & Assumpção Advogados Associados, conta que em 15 anos de atuação na área de Direito de Família atendeu apenas dois casos. - Os homens não dão conta do trabalho, da casa e dos filhos. Pressionada pelo ex-marido sobre os valores da pensão alimentícia, uma cliente de Fortaleza fez a seguinte proposta: eu pago o que você me dá de pensão e você fica com a guarda da criança. Ele mudou o discurso, porque criar filho dá trabalho. Mesmo aquelas que arcam integralmente com a criação dos filhos são vítimas de machismo e preconceito ao os deixarem com uma babá. Criança não é algo que você liga e desliga. Se você não deixar com alguém, como vai trabalhar e trazer dinheiro para casa? Então dizem que você não é uma boa mãe. Ao mediar as separações, a advogada nota que os homens são muito mais racionais, ao passo que as mulheres são emocionais e, pior, com raras exceções, são totalmente alheias ao patrimônio familiar. - Chegam aqui querendo saber quanto vão ganhar de pensão e não sabem dizer qual é o rendimento do marido, os bancos onde ele tem conta, número dos cartões de crédito, informações sobre o trabalho dele, enfim, são desinformadas. Eles, ao contrário, são precavidos e, se não estiverem dispostos a dividir o patrimônio meio a meio, escamoteiam os bens, transferem empresas para outros, fazem contrato de gaveta e depois retomam os imóveis. O ideal é juntar o máximo de informações para que tenham seus direitos assegurados. Depois de anos segurando as pontas em casa, enquanto os maridos chegam ao topo da carreira, muitas mulheres de meia idade têm a pensão negligenciada na separação. "São freqüentes expressões do tipo: ela que vá trabalhar. Como, se ela passou a vida toda se dedicando à casa e aos filhos?" Equilibrista Maria das Dores Santiago, doméstica, de 53 anos e separada há cinco, criou e educou os filhos - hoje de 31 e 33 anos - com o seu sustento. Há 26 anos trabalhando numa residência, orgulha-se de ter faltado apenas quatro vezes no emprego.Todos os dias faz o bate-e-volta entre São Paulo e Arujá, onde mora. Filha de lavradores do Paraná, ainda pequena, ela ajudava o pai na roça. Aos 20 anos, casou-se com o primeiro namorado e, dois anos depois, o casal veio para São Paulo. "Ele trabalhava numa obra e eu ficava em casa. Quando o nosso segundo filho nasceu, ele estava desempregado, então fui trabalhar como diarista. Primeiro, um dia por semana, logo depois, arranjei casas de segunda a sábado. Nesse período, a menina adoeceu e ficou meses na UTI. Mesmo assim, eu não faltava um dia no trabalho e ia visitá-la todos os dias, enquanto ele nem aparecia." As ausências do marido eram freqüentes. "Dizia que ia ao Paraguai comprar mercadorias para revender e descobri que, na verdade, estava de caso com outra. Agüentava a situação por causa dos filhos. O pior de tudo é que ele aprontava e descontava em mim com agressões físicas e verbais." Em busca de novas oportunidades, em 1979, a família seguiu para Rondônia. "Quando as crianças ficavam doentes, eu tinha de andar 18 km a pé até o posto de saúde. Como era uma cidade ribeirinha, isolada, em época de cheia, a gente chegava a passar a fome. Voltei para São Paulo com as crianças e, cinco dias depois, ele veio atrás." Em 1981, Maria empregou-se na residência onde está até hoje. O casal recomeçou do zero. Comprou um terreno na Freguesia do Ó e foi construindo a casa aos poucos. "Quando chegou na segunda laje, ele desistiu da obra. Eu fui tocando e mobiliei a casa todinha", conta. Para fazer algum dinheiro extra, Maria comprou um carrinho de cachorro quente por R$ 280,00 e vendia os lanches nos fins de semana, num ponto movimentado na Vila Penteado. "Juntei dinheiro, comprei uma Kombi e depois um Fiat Uno." Na época, começou a revender produtos da Avon e Natura e também passou a vender material reciclado. "Comprei um Corsa zero e, graças ao dinheiro obtido com a venda do reciclado, consegui abater algumas parcelas do carro. Quitei as prestações e, hoje, esse dinheiro extra vai para o seguro e o IPVA." Depois de 30 anos engolindo sapo e com os filhos adultos, veio a gota d?água. Durante uma discussão, o marido a expulsou da casa que suou para construir. "Peguei minhas malas e disse: fui. Lembrei dos conselhos de uma psicóloga no programa da Silvia Poppovic e coloquei um ponto final." Dura na queda, já comprou um terreno e pensa em construir uma nova casa. Virada A empresária Dóris Ravage, de 56 anos, morava com o marido e os filhos - na época com 11,13, 15 e 16 anos - no bairro do Brooklin. O marido quis ficar próximo do pai, dono de uma madeireira, e a família mudou-se para Pirapozinho, cidade no interior do estado, com 25 mil habitantes. - Em 1984, abrimos uma fábrica de botões e fivelas. A idéia era que eu ficasse apenas meio período ajudando na administração. Mas ele praticamente largou mão do negócio. Fiquei preocupada, porque, afinal, aquele era o nosso ganha-pão e também o de muitos funcionários. Enfim, descobri que ele tinha outra pessoa. Foram meses terríveis que se seguiram, mas eu não tinha escolha. Abri mão dos bens para ficar com o barracão de madeira da empresa. Sem olhar para as circunstâncias, fui me envolvendo, aprendendo mais sobre as matérias-primas, correndo de um lado para o outro, sempre com os filhos por perto, ajudando em pequenas funções no escritório. Foi quando surgiu a idéia de fazer fivelas de metal no estilo country, hit de consumo nos rodeios. Assim, nasceu a Sumetal. "No início, como não tinha maquinário, a fundição das peças era improvisada num forno de barro", conta. Com o mercado dominado por produtos importados, Dóris saiu-se bem usando a criatividade. Mas aí sofreu o primeiro revés com a entrada dos chineses no mercado, vendendo produtos similares bem abaixo do preço. Depois, a empresária foi copiada pelos concorrentes da região, até que, com tanta dor de cabeça, registrou a arte das fivelas no Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI). Os percalços com a pirataria a levaram de volta aos estudos. "Escolhi fazer Direito para entender melhor a legislação nesses casos." Formou os filhos com dificuldade. "Fiz 18 mil chaveiros e, com eles, permutei quase dois anos da faculdade de Psicologia da caçula." Sua maior alegria, além dos filhos, é a fábrica e os funcionários, que acompanham esta empreitada desde o começo. Determinada Numa quebrada da avenida Sapopemba, zona leste, fica a empresa de Sonia Mendes, dona da Sonia Stamp, uma abreviação de "Sonia da estampa". Descendente de espanhóis, a loira baixinha e elétrica, usando camiseta e jeans stretch, não aparenta ter 50 anos. Dá ordens e contra-ordens aos funcionários, mas sempre com o cuidado de chamá-los pelo nome. Na garagem improvisada de sua casa, onde sua história começou, está uma parte da estamparia. Vizinho, em fase de acabamento, fica o galpão com o maquinário e escritório. Mãe de três homens, com 31, 28 e 26 anos, criou e formou os três sozinha. "Fui pai e mãe e me lembro até hoje do dia em que assinei a papelada do divórcio e, na saída do Fórum, pedi a Deus que me desse saúde para criar homens de bem, porque do resto tinha certeza que daria conta." Operada 17 vezes por um problema de poliomielite na infância, não se deixou abater e, em dez palavras que diz, nove são elogios para a mãe, dona Helena, sua maior incentivadora. - Casei cedo, aos 18 anos. Ele enrolava, só queria tocar violão. Com a ajuda dos meus pais, abrimos uma fábrica de barquetinhas, aquela latinha nas vassouras de piaçava. Mas aí as pessoas falavam que ele se encostava, porque eu tomava a frente de tudo, então fechamos a fábrica, ele abriu uma mecânica e quase morremos de fome. Comecei tudo de novo, dessa vez fabricando escovas de limpeza com cerdas de coco. Quando o caçula tinha 1 ano e meio, depois de sete anos de casada, decidi me separar . Apoiada pela mãe, comprou uma máquina de bordar e ficava treinando em retalhos de tecido. Bateu na porta de um confeccionista, que lhe deu um pedido grande de roupinhas para bebê, uma parceria que durou três anos. Nesse meio tempo, comprou um terreno e começou a construir a sua casa, tomando a frente da obra com a ajuda da mãe. Em 1984, depois de um curso relâmpago de estamparia, viu que era aquilo que queria fazer na vida. Mas faltava o know-how. "Um conhecido que trabalhava em uma grande estamparia liberou uma visita à linha de produção. Enquanto o meu pai ficava com as crianças no carro, lá fomos eu e minha mãe olhando tudo, as máquinas e as mesas especiais. Tempos depois, ela me chamou de lado e disse que naquele dia tinha roubado algo durante a visita. Era um morcete, uma pecinha de metal que serve como guia para a impressão..." Na garagem do sobrado, que ainda era de terra, montou a sua primeira mesa de estamparia, usando os pontaletes que escoravam a laje. Cobriu a mesa com uma toalha de plástico, grampeando-a toda em volta, e passou a trabalhar até à luz de velas. "Lavava as peças tingidas e as secava na frente de casa. Um dia, bateu um vento e todos aqueles panos coloridos voaram pela rua, os vizinhos caçoaram, um pandemônio." Foi assim, com a cara e a coragem, que deu início à empresa que hoje tem três unidades. A produção chega a 600 mil peças/mês. Além de dirigir o negócio e cuidar dos filhos (o mais velho também montou uma estamparia e ela supervisiona a parte financeira), Sonia retomou os estudos e terminou o colegial, quando conheceu seu atual companheiro, com quem vive uma relação feliz há três anos. Seu lema? "Cruzar os braços, jamais. O trabalho é a minha grande paixão." E agora? Disposição para ir à luta, um bom círculo de amizades e um capital inicial de cerca de R$ 190,00. Estes são alguns dos requisitos para se tornar uma consultora de beleza da Natura, marca que oferece às revendedoras um desconto de 30% na compra dos produtos, permitindo uma remuneração razoável desde o início da atividade. Maria de Lourdes Peres, de 51 anos, mãe de uma filha de 15 e separada há cinco, é um bom exemplo. No tempo em que era solteira, trabalhou em banco e em algumas empresas de porte, mas, quando se casou, largou o emprego para se dedicar à casa. Ao se separar, deparou-se com um problema: como voltar ao mercado de trabalho depois de 15 anos afastada e sem um diploma? "Eu queria um rendimento pessoal e foi assim que, há quatro anos, comecei a revender produtos da Natura", conta. Entre as vantagens, cita o horário flexível e a facilidade de trabalhar até pelo telefone. "Para mim é uma terapia. Na parte social, você aumenta o círculo de amizades, é gratificante." Como o ex-marido arca com as despesas da filha do casal, ela vai fazendo planos, como montar uma pronta-entrega da marca. "Como é uma atividade que não requer experiência, em qualquer idade a mulher pode ter o seu próprio negócio", conclui.

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