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Velhos e novos tempos

Por Mary Del Priore
Atualização:

Depois da 2ª Guerra Mundial, o Brasil viveu um momento de ascensão da classe média. O carro se popularizou, assim como a piscina de clubes, o cinema, as viagens. Jovens podiam passar mais tempo juntos e a guarda dos pais baixou. Filmes americanos seduziam brasileiros e não foram poucos os que aprenderam a beijar vendo Humphrey Bogart e Lauren Bacall, casal de amantes na vida real. As revistas femininas tinham, então, um papel modelar no que dizia respeito à vida amorosa. Querida, ou sessões femininas em O Cruzeiro, vendiam a ideia de que ser mãe e dona de casa era o destino natural das mulheres, enquanto a iniciativa, a participação no mercado de trabalho, a força e o espírito de aventura definiriam a masculinidade. Não importavam os desejos, o que contava ainda eram as aparências, pois, segundo tais revistas, "mesmo se ele se divertir, não gostará que você fuja dos padrões e fará fofoca a seu respeito na roda de amigos". Durante os chamados Anos Dourados, aquelas que permitissem liberdades acabavam sendo dispensadas e esquecidas, pois "o rapaz não se lembrará da moça, a não ser pelas liberdades concedidas". Mantendo a velha regra da submissão feminina, eram os homens que escolhiam e, com certeza, preferiam as recatadas, capazes de se enquadrar nos padrões da "boa moral&boa família". O bem-estar do marido era a medida da felicidade conjugal, e esta adviria de um marido satisfeito. E qual era a fórmula? Seu primeiro componente eram as "prendas domésticas". Afinal, a mulher conquistava pelo coração e prendia pelo estômago. Brigas entre o casal? A razão era sempre do homem. As mulheres deveriam resignar-se, em nome da felicidade conjugal. Nada de enfrentamentos. O "temperamento poligâmico" dos homens justificava tudo: "mantenha-se no seu lugar, evitando a todo o custo cenas desagradáveis, que só servirão para exacerbar a paixão de seu marido pela outra." Afinal, no entender dessas conselheiras sentimentais, "o marido sempre volta". Entre os anos 70 e 80, a pílula anticoncepcional, a migração campo-cidade e a explosão urbana ajudaram a mudar os papéis na família. Começou-se a discutir o desejo de multiplicidade de parceiros sexuais, e a estabilidade sexual, necessária aos filhos, o lar e a carreira. Graças à disseminação da pílula, as mulheres conquistaram espaço no mercado de trabalho. Os álbuns de família ganharam novos atores: madrastas, padrastos, meio-irmãos e produções independentes. Segundo cálculos do IBGE, na última década, 47% dos domicílios tiveram pais ausentes. Muitos desses, caracterizam-se por ligações consensuais temporárias. Os avós têm novo papel: criar e educar os netos, repartindo com pais biológicos responsabilidades, inclusive financeiras. Os divórcios triplicam-se e há uma diminuição de 12% nos casamentos. Uma mudança importante se dá para as minorias: os homossexuais começam a sair do armário. É o começo do fim de uma sociedade que produzia sofrimento, graças ao jogo da repressão, do interdito, da miséria sexual. O destino individual se sobrepõe ao familiar ou coletivo. Condições econômicas, o crescimento da vida urbana e do individualismo autorizam tal transformação. Começa a caminhada para uma nova definição de casal: "ser livre junto." Para melhorar o quadro geral, o Viagra aterrissa aqui com estardalhaço. Põe fim às dolorosas injeções, bombas a vácuo e simpatias curativas, usadas para afastar o medo de falhar. Se até então a vergonha cobria o assunto, o tema passa a invadir a mídia.Para a família, o aumento da participação feminina no mercado trouxe pelo menos duas mudanças: o homem perdeu o status de único provedor; a mulher, a resignação. À medida em que ela se tornou financeiramente mais independente, ficou menos disposta a suportar uniões infelizes. Agora parece buscar, sobretudo, qualidade na vida a dois.Nas últimas décadas teve início um outro movimento, fruto de séculos de transformações: o que procurou separar a sexualidade, o casamento e o amor. Foi o momento de transição - muito lenta - entre o amor idílico dos avós para a sexualidade obrigatória, dos netos. Ninguém mais se casa, sem "se experimentar"; jovens consideradas por seus parceiros "frígidas" são descartadas dos jogos amorosos; as mulheres começam a falar sobre orgasmo. O domínio da reprodução, graças à pílula, vai consolidar essa liberação. A ciência vai se impondo sobre a ideia de pecado sexual. As coisas mudaram. Apesar dos riscos da AIDS, a sexualidade desembaraçou-se da mão da Igreja, separada da procriação, graças aos progressos médicos. E mais: foi desculpabilizada pela psicanálise, e mesmo exaltada. Hoje, a grande ausência de desejo é que é culpada. O casamento de papel passado não é mais obrigatório e escapa às estratégias religiosas ou familiares; o divórcio não é mais vergonhoso e os casais têm o mesmo tratamento perante à lei. A realização pessoal coloca-se acima de tudo. Mas tudo isso são conquistas ou armadilhas? Os historiadores de amanhã o dirão. *Mary Del Priore é historiadora e sócia do IHGB

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