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O salto alto acende o desejo de consumo das mulheres ao mesmo tempo em que incendeia as fantasias masculinas

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Por Vera Fiori
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Há séculos, nos rendemos ao salto alto. Os atores gregos calçavam sapatos plataforma para ficarem alguns bons centímetros acima dos meros mortais. Nos séculos 15 e 16, mulheres da Espanha e da Itália usavam sapatos primorosamente ornamentados, os chapins, cuja sola podia elevá-las a mais de 10 centímetros do chão. Para que pudessem caminhar calçando o tosco modelito, as damas venezianas apoiavam-se nos criados e cada passo beirava o desastre. Mas quem se importa em cair do salto? Como disse certa vez a historiadora de calçados June Swann: "é como no circo. Você pode aprender a andar em cima de qualquer coisa se praticar."   Veja também: Comedida Seletiva Por falar em praticar, no livro Como Andar de Salto Alto (editora Matrix), a autora Camilla Morton - colunista de moda do The Times, Harpers Bazaar e Time - usa uma boa dose de humor ao ensinar as novatas a terem um andar à la Marilyn Monroe. "Apóie as palmas das mãos no traseiro, uma sobre cada nádega, e comece a andar pela sala. Isso vai ajudar você a perceber o movimento dos quadris e ajustar o grau de balanço desejado." Como uma instrutora de auto-escola, Camilla sugere que o treino seja feito nos corredores do supermercado. "Saltos prontos, agarre-se à alça do carrinho e vamos lá! Pé direito, pé esquerdo, pé direito, pé esquerdo... Aos poucos, você vai encontrando seu ritmo natural, apesar da música chinfrim que esses lugares costumam despejar de seus alto-falantes." Não satisfeita, ensina, em detalhes, como andar com um salto 10,5 centímetros em pisos de mármore, tapetes escorregadios, escadas rolantes e ruas com pedras. Nem pergunte se o tombo vale a pena. Reze para São Crispim, o padroeiro dos sapateiros, e lembre-se da frase da top model Veronica Webb: "um salto põe a sua bunda em um pedestal, que é onde ela sempre deveria estar." Outra especialista que ensina o bê-á-bá do salto alto é Rachael Ray, popular apresentadora de TV norte-americana, que dá dicas em seu programa de como caminhar nas alturas com elegância. Verdade seja dita, não dá para comparar o andar de uma mulher usando tênis e moletom com outra de saia lápis com escarpins de salto agulha. Os seios se projetam, o traseiro é empinado, a perna fica alongada e, o mais importante: os homens acham muito atraente. Não apenas os homens. O estilista Tom Ford declarou que até as macacas babuínas andam na pontinha das patas quando querem seduzir os machos. Prada, Gucci, Manolo Blahnik (designer de sapato favorito da personagem Carrie, do seriado Sex and the City), Ferragamo, Chanel, Jimmy Choo, Sérgio Rossi são alguns ícones da moda em acessórios. O investimento em um par assinado por um destes tops certamente é alto, mas, como dizia a atriz Marlene Dietrich, entre comprar três pares de sapatos medíocres e apenas um de boa qualidade, fique com a segunda opção. O stiletto ou salto agulha, criado na Itália, no pós-guerra, mexe com o imaginário masculino, sendo sinônimo de fetiche em práticas como o trampling (que consiste em pisar no parceiro) e dangling (poses balançando o sapato ou chinelo). No site Desejo Secreto, dedicado ao tema, um devotado admirador dos pés femininos escreveu, em artigo intitulado High Heels, Mulheres Sobre-Humanas: - Particularmente, prefiro as sandálias e os tamancos, que deixam os dedinhos à mostra. Acho que também eles têm algo a dizer. Todavia, alguns pares de escarpins jamais serão superados em termos de beleza e classe. Aproveito também para, categoricamente, afirmar que saltos altos só farão alguma diferença nos pés de uma mulher a partir de 12 cm. Experimente olhar sempre para o chão quando caminhar em algum shopping center, centro da cidade ou coisa que o valha. Eles estão ali, sempre ao seu redor. Mas só chamarão a sua atenção quando tiverem ultrapassado a barreira do cotidiano. Ouso afirmar que esta barreira seja os 11cm. A partir dali, fica explicitada a intenção da mulher em ter seus pés admirados. Até no mundo da fantasia o salto agulha fez escola. Ícone da cultura pop, as imagens ingênuas e ao mesmo tempo provocantes das pin ups tiveram origem no século 19 com o teatro de revista, quando vedetes americanas iniciaram aparições em anúncios, maços de cigarros e calendários eróticos, os quais serviam de alento aos soldados da Segunda Guerra Mundial. Nos anos 70, com a banalização do nu feminino, elas entraram em decadência. Mas eis que em 1988, quando ninguém se lembrava mais delas, o filme Uma Cilada para Roger Rabbit reeditou a figura da pin up na pele da personagem Jessica Rabbit, uma ruiva de tirar o fôlego com seu vestido sereia, calçando luvas 7/8 e escandalosos escarpins vermelhos. SIM OU NÃO? Que o salto é sexy e elegante ninguém duvida, mas e quanto à saúde dos pés? Como qualquer mortal, a ortopedista Cibele Réssio, especialista em pé e tornozelo e mestre em ortopedia e traumatologia pela Unifesp, já quebrou o próprio tornozelo por causa de um sapato com plataforma, segundo ela, menos inofensivo do que se pensa. "Como ele é mais confortável porque o pé fica paralelo ao solo, a mulher relaxa e, num descuido, ocorrem as torções. Com o salto agulha, ao contrário, é preciso atenção o tempo todo para se equilibrar", explica. A ortopedista é uma consumidora voraz a ponto do seu filho desviá-la das vitrines. "Tenho 400 pares, entre eles, vários de Fernando Pires, Chanel e outros não tão famosos", conta. A paixão pelos sapatos levou-a à tese que defendeu em 1999 - A Avaliação Baropodométrica da Influência do Salto Alto em Mulheres. "Pensava em projetar um sapato de salto alto que não causasse dor. Mas a idéia não foi em frente." Na época, a especialista mediu a pressão na planta dos pés de 10 mulheres, recrutadas no Hospital São Paulo. Foram estudados 40 passos de cada uma em quatro situações diferentes: descalças, com salto de 3 cm, de 6 cm e de 9,6 cm. Conclusão: a partir de 3 cm, todo salto alto, independentemente do tamanho ou formato, muda o modo como a pessoa pisa no chão e se equilibra. "Quanto maior o salto, menor a superfície de apoio, o que faz com que o peso se concentre nos dedos. As articulações ficam sobrecarregadas, causando dor, calosidades e deformidades ósseas como joanetes. Ainda há encurtamento da musculatura da panturrilha." Para quem não abre mão dos escarpins e sandálias nas alturas, o jeito é fazer como a "médica fashionista", que até na maternidade usava chinelinhos de salto. "O ideal é intercalar o uso de saltos com modelos de sola plana e fazer alongamentos diariamente." Em contrapartida, uma pesquisa feita pelo professor e cirurgião vascular João Potério Filho, do Departamento de Cirurgia Vascular do Hospital das Clínicas (HC) da Unicamp, mostra que o uso do salto alto reduz a pressão nas veias das pernas e tem poder terapêutico. A compressão nas veias foi medida antes e depois de cada teste, quando mulheres usando saltos de 7 cm e 10 cm caminharam durante um minuto na esteira. Depois, descalças, elas repetiram os testes. "Com o salto, para se equilibrar, a mulher usa todos os músculos das pernas e a pressão nas veias." O professor observa que quem começa a usar saltos cedo assume uma postura diferente e, com isso, acaba corrigindo possíveis defeitos ortopédicos, uma vez que é obrigada a contrair os músculos da perna com mais força.

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