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Réquiem por uma amiga

Por Rosiska Darcy de Oliveira'
Atualização:

Perdi, pelo caminho, uma grande amiga. Não importam as razões. Não foi surpresa para mim seu caráter dúbio que eu intuía. Nada foi surpresa, banal como são, nesses casos, as pequenas traições e rivalidades. Na verdade não perdi, joguei fora, de um dia para o outro. Como uma lâmina que cai não se sabe de onde, cortei todo contato, não quis mais vê-la. Simples assim, não respondi mais ao telefone. Se eu sabia que ela não valia lá grande coisa, por que de repente esta reação tão brusca? Pois bem, não sei. Passei anos sem saber e só hoje, quando por acaso cruzei com ela, descobri. Foi condenada sem direito de defesa. Ninguém, nenhum argumento conseguiria absolvê-la do mal que me fez: quase destruiu meu imaginário sobre a amizade. O que não é menos grave do que destruir um grande amor. E, como nesses casos, não é aquela amizade ou aquele amor que é posto em risco mas, bem pior, a capacidade de amar. Não tivesse sido nossa amizade tão pintada de dourado pelo meu desejo de alegria, não tivesse a pobre moça sido alvo do meu exercício ficcional sobre a beleza de uma relação de confiança, não tivesse sido ela arrancada de sua humanidade vil e transformada em heroína pelo meu pendor literário, tivesse ficado ali, uma banal ambiciosa e arrivista, teria sido tão fácil perdoá-la, conviver com ela, tomando um pouco de cuidado com o que dissesse ou fizesse. Poderíamos ter passado a vida lado a lado, eu sorrindo de banda e comentando com os outros, ela é assim mesmo. Não fosse eu escritora. Inventei, sim, uma história tão bonita, tão feita de lealdade que o falsete da moça, sempre fora do tom, acabou por estragar. E foi isso que eu não pude perdoar, meu belo enredo achincalhado, transformado em folhetim. Hoje quase lhe pedi desculpas. Desculpas por ter tomado emprestado sem lhe pedir licença seu humilde destino, que tentei a força reescrever, dando-lhe foros de personagem. O que fazer com um personagem falhado senão deletá-lo? Deletei. Não me arrependo. Sofri a dor do imaginário encarnado, desmentido, transformado em reles vida real. Nada pior para a escrita, mas melhor para mim. Temi, e daí minha sentença severa, que a imaginação se perdesse para sempre, desconfiada, recusando-se a pousar em outra imagem, tirando o gosto das coisas. Não fosse eu incorrigível. Ou, ao contrário, corrigível. Nada se perdeu, apenas apurou-se a minha estética e, se outras amigas inventei, tive o cuidado de me inspirar em seres mais vivos, mais próximos das ambigüidades e fraquezas que eu recusara àquela que deletei. Exigi menos, esperei nada, deixei escapar pelas páginas da minha vida um sem número de enredos que se escreveram a si mesmos com bem mais talento e graça do que eu. Amo profundamente a amizade sobre a qual raramente escrevo, uma escrita tímida, mas já li sobre mim. Ser personagem é bem mais arriscado do que ser autor. Saí-me bem, creio, mas também não me importaria se assim não fosse. Não é problema meu. Em se tratando de amizade, quero a vida real. Sem enfeites, aquela que, como uma lixa, vai gastando a alma e as ilusões. Quero o que sobra, sólido, desse dia a dia tão feio, tão duro, povoado de provações e acidentes , onde algumas heroínas de carne e osso ainda encontram o tom e o lugar do carinho, do consolo e da fidelidade, o tempo sem tempo de uma escuta, um café no fim do dia, um balanço da vida em tom de confiança, um batom comprado às pressas mas que me cai bem. Meu nome chamado pelo apelido, um batismo novo que celebra a vida a partir de um certo momento, quando nos conhecemos. Em matéria de ficção quero chegar mais perto do que é difícil, despir guirlandas, construir no agreste. Minha ex-amiga, aquela, a personagem inconsistente que inventei e deletei, mereceu sumir no vazio. Naquele tempo não me ocorreu condenar a autora. Mas sei do risco. Vive até hoje em liberdade condicional. *Rosiska Darcy de Oliveira é escritora; rosiska.darcy@uol.com.br

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