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Reprodução assistida avança no País, mas normas são de 1992

Com a proliferação de clínicas, técnicas experimentais e antiéticas acabam sendo vendidas como produtos

Por Eduardo Nunomura
Atualização:

A psicóloga Sandra Andrade de Castro é uma "fivada". Como milhares de brasileiras, desejava mais que tudo ser mãe e, para isso, recorreu à fertilização in vitro (FIV). Entrou para o clube de "fivadas", palavra desconhecida da população, mas que para elas representa a vida, um filho ou só o sonho de ter um. Cada vez mais casais decidem engravidar com a medicina. Um projeto de vida que busca a alegria, mas é pontuado por dor, sofrimentos físicos e emocionais, dias infindáveis e frustrações contadas em tentativas.Sandra fez três FIVs, todas fracassadas. Tentou outros dois métodos de concepção artificial, teve dois abortos e pensou em desistir. Hoje, aos 40 anos, é mãe de Natan, de 8, e de Saulo, de 2. O primeiro veio por adoção. O segundo, pela simples ação da natureza, sem nenhuma intervenção de laboratório. "Abri todas as portas porque não sabia por qual delas Deus mandaria nosso filho", lembra Sandra, recontando sua história. Esta começou em 1996, quando aos 27 anos e um de casada, não conseguia engravidar. Embora jovem, foi encaminhada a uma clínica de reprodução assistida. Ela tinha a síndrome de ovários policísticos, com menstruações irregulares, e seu marido, o advogado Marcelo Soares de Castro, acusava baixa quantidade de espermatozoides. Sua primeira tentativa de engravidar artificialmente foi por meio da fertilização in vitro. O método consiste em retirar óvulos da mulher e deixá-los em contato com os espermatozoides do homem. Se houver a fusão, o embrião é formado e introduzido no útero.Foram três tentativas sem êxito para a psicóloga. Em duas delas teve hiperestimulação dos ovários, sua barriga inchou com a água e foi internada com risco de morte.Depois de gastar muito dinheiro, Sandra recorreu ao serviço público em Belo Horizonte (MG) para continuar o tratamento. Submeteu-se a uma ICSI, a injeção intracitoplasmática de espermatozoide. É também uma FIV, mas com a diferença de que um profissional introduz, com o uso de um microscópio, o espermatozoide dentro do óvulo. Só deve ser indicado em casos graves de infertilidade masculina (mais informações nesta pág.). Muitos casais por desinformação, pressa em engravidar ou má prática médica aceitam pular etapa na busca da reprodução assistida bem-sucedida. Partem para métodos complexos e caros antes de esgotar os mais simples.EXPLOSÃO DE CLÍNICAS"A grande questão em reprodução assistida não é ter a tecnologia, mas se e quando ela deve ser usada e quais suas implicações para gerações futuras", critica Jorge Hallak, chefe do setor de Andrologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP). Hallak cita que muitas vezes antes de partir para a ICSI, uma reversão de vasectomia ou o tratamento da varicocele (varizes no testículo) já resolveriam o caso, se o problema estiver no homem. Seis de cada dez pacientes de Hallak engravidaram sem recorrer aos métodos mais caros.As sociedades brasileiras de Reprodução Assistida (SBRA) e de Reprodução Humana (SBRH) têm constatado a explosão de clínicas. Em menos de cinco anos, dobraram. Hoje, são cerca de 200. Alguns hospitais públicos também passaram a atender. Mas neles as filas são imensas. Em Brasília, são 4 mil mulheres. Em Goiânia, mais de 200. A estimativa nacional é de 90 mil casos por ano à espera de um tratamento, mas as redes pública e particular têm capacidade para atender 20 mil.Há uma década, quando o bebê de proveta já era uma realidade mundial, as técnicas tinham uma taxa de fertilização em torno de 30%. Hoje, com a ICSI, a chance de engravidar é de 50%. Sem tratamento, um casal que adota métodos naturais tem 20% de probabilidade mensal de gerar um filho. Com índices tão positivos, procura elevada e um número maior de mulheres adiando a maternidade, as clínicas particulares proliferaram.Como os planos de saúde não cobrem a reprodução assistida, mas pagam os exames, a lei do mercado entra em jogo. Os preços de um tratamento FIV começam em R$ 8 mil para mulheres abaixo de 40 anos e superam os R$ 20 mil para as mais velhas. Um método como a inseminação intrauterina não passa de R$ 2 mil. "Quando se queimam etapas, deixa de ser ciência e vira mercantilismo", diz o presidente da SBRH, Waldemar Naves do Amaral.RESOLUÇÃO DE 17 ANOSA inexistência de uma lei da reprodução assistida criou um vácuo sobre o que é permitido. Serve de norte aos profissionais uma resolução de 1992 do Conselho Federal de Medicina (CFM). Ela proíbe a escolha de sexo da criança (sexagem) se não houver indicação para evitar transmissão de doenças, limita a quatro embriões a ser introduzidos por tentativa e não permite que doadores de óvulos ou espermatozoides conheçam quem serão os receptores e vice-versa, nem permite cobrar por esse ato.Em outras situações, decorrentes de descobertas médicas surgidas depois de 1992, a resolução não diz nada. É o caso da transferência de citoplasma, da maturação de óvulos e espermatozoides. São técnicas ainda experimentais, mas que chegam a ser vendidas por clínicas como realidade. "É um risco oferecer técnicas sem ter validação científica", diz Adelino Amaral da Silva, presidente da SBRA. A entidade e outras relacionadas, como a de ginecologistas e obstetras, enviaram na semana passada um ofício ao CFM pedindo a revisão da resolução. "A normativa (de 1992) é ótima, panorâmica, mas quando a técnica avança rápido, ela precisa ser revisada periodicamente", afirma Naves do Amaral.No Congresso, há projetos de lei de reprodução assistida que nunca são votados. Mas para as entidades médicas esse pode não ser um problema. As leis em discussão são restritivas e engessariam a prática. A não-existência de uma lei, por outro lado, criou um indesejável rótulo para o Brasil, o de rota do turismo reprodutivo. Estrangeiros chegam decididos em ter filhos e escolhendo se serão meninos ou meninas. Sabem também que algumas clínicas brasileiras aumentam a chance de gravidez com a técnica da transferência de citoplasma. Considerada antiética, ela introduz no óvulo da futura mãe um pedaço do óvulo de uma mulher mais jovem. A criança nascerá com a herança genética do pai, da mãe e de uma terceira pessoa.PARAÍSO REPRODUTIVOO turismo reprodutivo é relacionado diretamente com a legislação local. Alemanha e Itália são considerados mais restritivos. Espanha e França têm mais tolerância. E os Estados Unidos são tidos como liberais. Muitos países acabaram limitando o número de implantes de embriões para evitar filhos múltiplos numa gestação. No Brasil, clínicas têm reduzido para 2 ou 3 embriões por vez."Existe muito marketing, envolve muito dinheiro e colegas têm acenado com facilidades sem explicitar que se tratam de procedimentos com limitações", alerta o chefe do setor de Reprodução Humana do Hospital das Clínicas da USP Ribeirão Preto, Rui Alberto Ferriani. Cada caso deve ser tratado individualmente e há um protocolo a ser seguido. "O fato é que as técnicas têm ajudado um grande número de casais e nossa obrigação médica é explicar aos casais os benefícios e os riscos desse tratamento."A psicóloga Sandra desconhecia os efeitos colaterais que poderia enfrentar quando pisou pela primeira vez numa clínica. Ela não foi bem informada dos riscos que correria. De uma segunda clínica, Sandra e o marido saíram horrorizados. O casal recebeu propostas de pacotes que incluiriam três tentativas e valores diferenciados até o sucesso de uma gravidez. "Me senti como uma mercadoria, como se o desejo de ser mãe fosse um leilão."Em redes sociais da internet, há relatos de inúmeros casos de sucesso e fracasso. Sandra depositou o seu em uma delas e, fora da rede, decidiu escrever o livro Quando Anseio por um Filho. Embora seja uma psicóloga que prega aos pacientes o equilíbrio, ela sentiu o mundo estremecer depois das experiências ruins. Prefere agradecer por Natan (que considera presente divino) e Saulo (implorado em orações), assim como espera que as técnicas que não lhe foram úteis tragam os filhos dos outros milhares de casais.

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