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Recuo em nº de cirurgias eleva taxa de cegueira

Operações de catarata pelo SUS caíram 23% em 3 anos, após ministério substituir mutirões

Por Ligia Formenti
Atualização:

O número de operações de catarata pelo Sistema Único de Saúde (SUS) caiu 23% em três anos. Reflexo da troca da política de cirurgias de média complexidade, que acabou com os mutirões, a queda deixou um saldo de 146,6 mil novos cegos no País só em 2008. Em 2005, o saldo era de 67.512. O governo diz que não falta dinheiro, que os procedimentos mudaram e, contra as evidências, alega ter havido "redução natural da demanda". A coordenadora do serviço de Oftalmologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Denise Fornazari, diz que as verbas extraordinárias foram suspensas - antes da mudança, em 2006, elas eram destinadas às cirurgias de catarata. O procedimento passou a ser financiado por um caixa comum, destinado a todas as operações de média complexidade. Tal alteração levou a Unicamp a reduzir a oferta de 300 cirurgias mensais para 150. Nos primeiros meses após a alteração, a cota havia caído para 50. "Se não falta dinheiro no ministério, aqui falta muito. Talvez o problema se resolva, mas, por enquanto, não é o que ocorre." Quando a mudança foi determinada, em 2006, o ministro da Saúde, José Gomes Temporão, então secretário de Assistência à Saúde, afirmava ser preciso acabar com o que ele definia de "populismo sanitário" dos mutirões. Para Temporão, o sistema, criado pelo ex-ministro José Serra (PSDB), privilegiava um número restrito de doenças, não garantia redução da fila de espera e era de difícil controle do uso de recursos. No lugar dos mutirões foi criada a Política Nacional de Procedimentos Eletivos de Média Complexidade, sistema que contempla 64 cirurgias, em vez das 4 previstas no mutirão - catarata, varizes, próstata e retinopatia (doença degenerativa da retina). Para que as cirurgias sejam feitas, Estados e municípios devem apresentar projetos específicos. Verbas são liberadas para locais cadastrados, que comprovem a necessidade das cirurgias e a capacidade para realizá-las. Na prática, o governo abriu ampliou as opções, mas tirou o foco da catarata. EM QUEDA Especialistas afirmam que seria necessário criar uma transição entre um sistema e outro. "Os números estão aí para mostrar o impacto dessa lacuna", diz o professor de oftalmologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) e da Unicamp Newton Kara José. "Uma canetada foi suficiente para provocar um enorme retrocesso na política de combate à cegueira, que inquestionavelmente avançava", avalia o professor, um dos idealizadores e defensores do mutirão. Um ano antes de a política ser mudada, em 2005, foram feitas pelo SUS 331.488 operações. Em 2006, foram 201.496 procedimentos. "Não basta fazer uma comparação de indicadores. Cada número significa que uma pessoa idosa permanece em casa, dependente da família, porque não tem acesso a uma operação", diz Kara José. "Há um custo social, um drama por trás desses números difícil de ser contabilizado." Após a queda em 2006, houve recuperação gradativa nas cirurgias (mais informações nesta página). Para o consultor do Ministério da Saúde, Alexandre Talebe, a situação se normalizou. "Houve uma dificuldade inicial para apresentação dos projetos, o que já foi superado." Ele atribui os números atuais de cirurgias a uma redução natural da demanda. "Estamos tranquilos. Não há contingência de recursos, há até mesmo uma folga de verbas. Se fosse preciso fazer mais cirurgias, faríamos." Denise Fornazari discorda da avaliação de Talebe. "Como pode haver redução na procura se a população envelhece?" Pelas estimativas internacionais, um país com as características do Brasil deveria fazer 570 mil cirurgias de catarata por ano - incluindo as realizadas pelo sistema privado de saúde, cerca de 30% do total. "Há um inegável déficit no atendimento público. Além disso, a tendência natural é de a demanda aumentar, pois a população está envelhecendo", diz Carlos Leite Arieta, coordenador no Brasil do Programa 2020 - iniciativa da Organização Mundial da Saúde (OMS) para acabar com a cegueira tratável até 2020. Para especialistas, é fácil explicar por que a demanda diminuiu. "Esse é o típico paciente que não faz fila em frente ao hospital. Ele fica em casa", observa Kara José. Ex-presidente da Sociedade Brasileira de Catarata, Durval Carvalho admite as dificuldades iniciais e conta que alterações foram feitas em 2008. Ele elogia a mudança do sistema de mutirão para o de projetos e diz que a fórmula antiga abria espaço para desvio de verbas. Além disso, aponta dificuldade em acompanhar o pós-operatório dos pacientes. "De fato poderia ter havido um período de transição. Mas nessas horas também conta o lado político. E o mutirão era marca registrada do ex-ministro José Serra", admite.

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