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Quebrar pedras a estudar: uma opção

Alisson não gosta da escola porque acha que não aprende como deveria

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Por Redação
Atualização:

Alisson dos Santos Souza prefere quebrar pedras a estudar. Ao despertar, já se imagina no garimpo, ganhando dinheiro, e não na escola, que freqüenta quase por obrigação. Às vezes, assiste a uma aula com "ódio". A palavra é dura. "Quando peço uma resposta para o professor e ele diz ?cace no livro?, fico com ódio. Sinto raiva dele. O cabra pede um assunto de matéria e ele não quer dar?" Os planos do jovem de 14 anos são chegar até a 3ª série do ensino médio. Faculdade é perda de tempo, porque, para ele, quem fizer vai seguir sua mesma sina, a de quebrar pedras. Em Pedra Lavrada, na Paraíba, a palavra "mineração" significa emprego. As crianças crescem querendo ser como os pais, agricultores teimosos no semi-árido. Quando jovens, preferem migrar. Se for ficar, o jeito é garantir-se com uma vaga no serviço público ou no garimpo. No primeiro caso, estudo vale ouro, mas dá trabalho para nem todos chegarem lá. No segundo, Alisson já tem as ferramentas de que precisa: um martelo e uma luva de borracha. Ao acordar antes das 6 horas, para não perder o ônibus escolar que passará 45 minutos depois, o jovem não apanha as ferramentas, mas cadernos, livros, canetas e lápis. Uma hora e meia mais tarde, chega à Escola Municipal Maria Elenita Vasconcelos Carvalho. O sítio Cachoeira da Josefa, onde mora, fica perto do local de estudo. A demora deve-se à quantidade de paradas para apanhar os alunos da zona rural que têm de estudar no centro da cidade. Nas comunidades de chão de terra, a educação básica só vai até o 4º ano do ensino fundamental. Muitas vezes, em salas multisseriadas, juntando quem não sabe ler com quem sabe. Para quem passou dessa fase, o aluno é quem vai até o grupo escolar. Na volta, quando todos retornam para casa, Alisson pára no meio do caminho, no pé do Morro Alto Branco. ALTA EVASÃO Alisson é parte de uma história mais complexa da Maria Elenita. Pelo Índice do Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), a escola ficou entre as piores do Brasil. E quando o País atingir o ensino de Primeiro Mundo, em 2022 ,como se espera, a unidade vai estar no padrão da educação brasileira de hoje. No dia em que soube dessa notícia pelos jornais paraibanos, o diretor Antonio Cordeiro Rodrigues sofreu um "blecaute". "É como se dissessem: você é o culpado. Fiquei em choque. Não dá vontade de levantar e caminhar pelo povo", resume. O resto da escola sofreu junto. "Onde estamos pecando tanto que não atingimos a qualidade? Alguém tem de vir de fora explicar? Por que o nosso bolo não fica tão fofinho quanto o dos outros?", indaga a vice-diretora Shelzea Maria Bezerra Oliveira. O secretário de Educação, Diogo Kennedy Dantas do Nascimento, desabafa: "Se somos considerados os piores, já deveríamos ter sido atendidos pelo MEC. Municípios foram visitados antes do nosso. Parece que vai ser o contrário: os piores serão os últimos". A escola enfrenta problemas comuns ao semi-árido. Taxa de evasão alta, sobretudo no período noturno, disparidade de ensino entre as zonas urbana e rural, distorção entre idade e série na casa dos 80%, alunos que avançam de ano sem saber ler e escrever. "Antes havia o querer aprender. Cada geração tem seus valores. Hoje a mídia influencia tudo. Querem ser jogador de futebol ou modelo", diz Antonia Maria de Almeida Macedo, 50 anos de idade e 15 de magistério. "Se o aluno tem dificuldades de decodificar letras, imagine ler as entrelinhas de uma Prova Brasil? Não tem essa noção de mundo", diz Claudiane Maciel da Rocha, professora de português. REPETÊNCIA EM MASSA A 32 quilômetros de Pedra Lavrada fica São Vicente do Seridó. Wagner Tavares Vasconcelos leciona nas duas cidades. Ele estranha que a primeira tenha ido tão mal perto da segunda, se nesta as escolas têm sérios problemas de estrutura. "E a diferença entre os alunos não é tão grande. Por isso gostaríamos de saber como atacar o problema." Com 1.324 alunos, professores recebendo R$ 722 por uma jornada de 25 horas semanais, todos com diplomas das universidades Estadual e Federal da Paraíba, a escola Maria Elenita está imersa num profundo ponto de interrogação. Direção e professores já se reuniram algumas vezes para buscar respostas. Traçaram um diagnóstico contemplando tudo o que vêem como problemas. Lembraram até que estão numa cidade cuja taxa de analfabetismo é superior a 40% entre os maiores de 16 anos, que a mineração surrupia metade dos alunos do período noturno até a metade do ano e, se apertar demais o ensino, a desistência cresce proporcionalmente. "Parece que o professor é culpado de tudo, mas o aluno daqui foge da sala de aula, não se interessa", lembra Claudiane. A vice-diretora Shelzea se recorda da última reunião que convocou com cerca de cem pais das duas turmas com maiores problemas de notas e nível de aprendizado. "Só vieram seis. Detalhe: eram os dos alunos que não têm problema algum. E aí? O que faço?" No fim de ano, quando o boletim final indica repetência de grande parte da turma, as famílias comparecem em massa. O pai de Alisson estudou até a 4.ª série. Começou a trabalhar com 8 anos. Aos 22, largou a escola para se casar. Há 10, herdou 1,2 hectare. De lá para cá, nunca viu vingar uma cultura de milho ou feijão. E o garimpo sempre garantiu a mesa da família. Há dois anos, decidiu arrastar o filho para o mesmo destino. "Não vou deixar ele em casa sem fazer nada", justifica José Antonio Batista dos Santos, o Zuza, de 40 anos. "Muitas vezes não tive condições de dar o do dia para eles, imagine se posso dar o futuro?" Alisson poderia protestar, revoltar-se, mas, como o sonho de ser um atacante como Kaká nunca se realizará, a única possibilidade é focar na escola, de que um dia já chegou a gostar. Entre as lembranças que guarda estão "a turma do fundo" e "a fofoca com os amigos". A rotina impõe-se. Às tardes, depois de comer em minutos uma marmita preparada pela mãe, ele arma uma tenda de papelão e troncos. O garimpo é a céu aberto, o sol inclemente. E há uma carrada de pedras à sua espera. Mais velho de cinco irmãos, Alisson ganha R$ 200 por mês para martelar blocos de quartzo bem mais pesados que os livros e cadernos. Sua tarefa consiste em deixar o mineral branco de doer os olhos. Pai e filho quebram dez toneladas por semana e Zuza consegue ganhar um salário mínimo e meio por mês. A mãe de Alisson, Joseneide Ferreira dos Santos Souza, merendeira de uma escola rural, ganha um salário mínimo. Faz um tempo, um estrangeiro foi até eles no garimpo e mostrou para que serve o quartzo e o feldspato, outro mineral. Viram um "azulejo de 500 anos de garantia", vendido na Espanha a uns R$ 400 o metro quadrado. "Foi o que disseram. A vida do nordestino é dura, compadre", acrescenta o pai, que acredita que o filho estuda numa boa escola.

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