Próxima esquina

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Por Rosiska Darcy
Atualização:

O que desgraça os seres humanos é ter sido criança. Não sou eu quem diz, é a voz tonitruante e abalizada do filósofo René Descartes, explicando o que traduzo ao meu jeito.A pobre criança desembarca em mundo que não escolheu, país, família, tempos. E todas as suas escolhas futuras serão feitas a partir daí, dessa realidade herdada e não querida que, no entanto, é o único mundo que ela conhece. As palavras, os valores, os comportamentos - que não são senão invenções humanas - à criança aparecem como o mundo real, o único possível, indiscutível e inelutável como as árvores, o céu ou o mar. Brinca em liberdade, é verdade, inventa mundos paralelos, mas não tarda a que, chamada à razão, reconheça no mundo adulto o espelho do que é certo e errado, justo e injusto, moral ou imoral. Se alguma coisa em seu íntimo desmente essas certezas, ela esconde como pecado ou como tara, e sofre, no esforço de se enquadrar no mundo em que nasceu.Há quem viva a vida inteira nesse mundo infantil de submissões e segredos, de frustrações e desencontros. E, pior, acreditando que exerce uma liberdade, tal como a liberdade é definida nesse mundo que herdou. Mas para quem já na adolescência, em incursões na periferia da casa, descobre que a vida é uma escolha entre versões do mundo muito diferentes, a angústia se instala, aquela bem conhecida e fiel companheira da liberdade.O mal que aflige os seres humanos é ter sido criança e não ter sabido que a liberdade os esperava na próxima esquina da vida, não saber o quanto ela é exigente e como é duro construir-se a si mesmo. Vida afora oscilamos entre o apelo da liberdade, do ardor e da aventura de viver, e a saudade das certezas e aconchegos da infância, de um mundo protegido que decide por nós.Pensei em tudo isso nesses tempos de ameaças, de crise de certezas, o chão fugindo debaixo dos pés, o dinheiro do mundo e os empregos sumindo, cada um se perguntando quando vai chegar a sua vez. Moral da história, o mundo não era o que nós pensávamos, ele pode virar de pernas para o ar de uma hora para outra. O mundo trai. E agora?Assim como a infância condiciona nossas escolhas mais tarde, a vida que vivíamos até agora condiciona nossa maneira de pensar nosso presente e futuro. Difícil voltar a imaginação para outras vidas possíveis. Difícil aceitar que a liberdade é justamente a arte de se construir cada dia dentro de situações que nos constrangem e que impõem, sim, limitações.Um amigo, que foi posto na rua da empresa em que há anos trabalhava, murmurou no meu ouvido, me sinto como um exilado. Falou com a pessoa certa, desse assunto entendo bem. Quem já perdeu suas praias, família, bens, profissão, identidade, língua e a própria casa viveu um festival de horrores, mas, garanto, guardou a liberdade de se escolher dentro de uma vida em que, querendo ou não, pisava na neve. Cada um não é senão o que faz de si mesmo, nas suas circunstâncias, e essa é a liberdade que lhe resta.Não caio nessa história de crise, uma tormenta que passará. Não é. Um tempo se esgotou, o cotidiano não será mais o que era antes e se alguma vantagem há em tudo isso é a possibilidade de rever opções que pareciam livres, porque balizadas por hábitos e valores de um mundo que assim definia a liberdade.Perguntei ao amigo "exilado" dessa empresa que sentia como o próprio chão: "a vida que você vivia era a única que queria?" As escolhas, agora, podem apontar para o futuro que é novo e imprevisível, e não para o passado que não voltará. Porque o mundo que vem por aí vai ter que gerar novos valores, novos modos de convivência, que talvez lhe tragam um novo chão. Não eram votos de Poliana nem palavras açucaradas de vão consolo. Eram um apelo à sua capacidade de se libertar das expectativas que se impunham desde a infância e que ele mesmo se impunha, e se prolongavam na relação infantil e enganosa que mantinha com sua "família profissional". Exilados todos estamos de uma terra imaginária, fictícia, Shangri-la que habitamos longos anos e que se prometia próspera e eterna. Acabou. O exílio, acreditem, tem suas vantagens. *Rosiska Darcy de Oliveira é escritora, email: rosiska.darcy@uol.com.br

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