Pedaladas heróicas

O grupo Predadores de Distância, composto por duas mulheres, realizou uma aventura de 24 dias e 3 mil quilômetros

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Por Cristiana Vieira
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Antofagasta, extremo oeste do Chile, foi o destino escolhido por um grupo de sete amigos para uma viagem de vinte dias. Até então, uma história comum. Se não fosse um detalhe: os 3 mil quilômetros seriam percorridos sobre velozes rodas de bicicletas. E mais, os sete integrantes nem eram tão amigos assim. Vencida pelos Predadores de Distâncias - o nome do grupo -, a aventura levou 24 dias. Sob o sol de verão em pleno 3 de janeiro, a equipe partiu de Balneário Camboriú, Santa Catarina, rumo a Antofagasta. Entre os sete participantes, duas mulheres, sendo que uma estava com cólica menstrual no dia da largada. A vítima foi Adriana Gassi, mais conhecida como Drika, uma arquiteta de 36 anos que, hoje, dedica a maior parte do tempo aos treinos. Pratica mountain bike há 10 anos e participa de corridas de aventura. Essa paixão pelo esporte começou quando uma outra paixão chegou ao fim. "Passei a focar na corrida, ao invés do namoro." Drika conta que a convivência entre as pessoas do grupo foi difícil, apesar dos objetivos em comum. Para ela, é nessas horas que se aprende a lidar com egos, teimosia e críticas. "Pensei que seria turismo, mas foi uma lição de vida." Para se ter uma idéia, em um dos hotéis onde passaram a noite, o banheiro não tinha assento no vaso, a descarga estava quebrada, o ralo do boxe estava entupido, tinha cabelo na fronha e, para fechar com "chave de ouro", ainda receberam a visita de uma barata durante a noite. COMPENSAÇÕES Mas, em outras situações, a vida foi justa com esses heróis. Alguns sacrifícios foram recompensados por prazeres como cochilos embaixo da sombra de uma árvore e noites de puro desfrute e conforto, com direito a deliciosos jantares regados a vinhos chilenos. Além disso, a chance de admirar paisagens que ficarão para sempre gravadas na memória. Todos os participantes do Predadores de Distância são atletas, têm condicionamento físico muito bom, mas a reação diante de um desafio é realmente imprevisível. A ala feminina, mesmo minoria, destacou-se na aventura. E se já é difícil mostrar o potencial da mulher em um ambiente comum, imagine quando a força exigida é, sobretudo, física. Malu França, de 35 anos, a outra integrante do grupo, deixou a vida de secretária-executiva e, desde 2001, se dedica a desbravar o mundo. Ao lado do marido e a bordo de um motorhome, viaja por vários destinos, praticando também cicloturismo, o que é bem diferente do que ela fez no Predadores de Distâncias. Aliás, Malu entrou na aventura quase na última hora. Estava em Balneário Camburiú quando um amigo perguntou se ela e o marido queriam fazer parte da equipe de apoio na viagem. Como ela queria ir mesmo pedalando, deixou que só o marido assumisse a função de apoio. "Estava atarefada, por causa das festas e visitas de fim de ano, mas abracei esse presente de Papai Noel." Malu foi a única que viajou a bordo de uma mountain bike, os outros participantes seguiram em uma speed, que é bem mais leve. Ela admite que, em alguns trechos da viagem, pegou carona na caminhonete de apoio. Apesar de ser acostumada a fazer cicloturismo, não era considerada atleta. "Embora não tenha experiência, posso ter acumulado mais tempo de bike do que os outros participantes", compara. ROTINA Nesse tipo de experiência, é normal que ocorram pequenas diferenças pessoais. Segundo os participantes, nos primeiros momentos de estrada, as pessoas se sentem em um jogo de cartas, em que cada um procura esconder seu jogo e descobrir o do outro. A cada dia, os integrantes do grupo se revelam mais. E são muitos desafios dentro de um só. Ainda no terceiro dia, o espírito de competição era forte. Mas, a partir daí, começou a aflorar o sentimento de grupo e a preocupação com a segurança e o bem-estar dos companheiros. Foi quando a sinergia do grupo se deu. "As dificuldades e dores compartilhadas alinharam as forças divergentes e os sete obstinados ciclistas ganharam velocidade, embalados pelo motor da harmonia", definiu, com poesia, Santiago Ramos, da equipe de apoio. A meta era pedalar entre 120 e 180 quilômetros por dia. Como o calor era forte, os atletas acordavam mais cedo para evitar maior exposição ao sol. "Pegamos um calor de 45 graus. A marca do pneu ficava em autorelevo no asfalto", lembra Drika. A cada duas horas de pedalada, em média, eles tinham 15 minutos para um lanche, além de água, muita água. O tráfego intenso nas estradas, a sujeira e o mau estado dos acostamentos deram muito trabalho ao mecânico da equipe. A estrada estreita e muito movimentada assustava. Assim como a chuva pesada e os relâmpagos. Para manter o ritmo, o grupo chegava às cidades (onde passaria a noite) por volta das 20 horas. Tinha de encontrar um hotel, tomar banho, sair para jantar e, quando voltava, já era quase meia-noite. No dia seguinte, deveria estar de pé por volta das 5h30. Os meios de hospedagem eram tão diversos que eles passaram a noite até em uma capela. E de favor. Lá não havia luz nem banheiro, e a cozinha foi improvisada no quartinho dos fundos. Mas aproveitaram bastante o contato com a cultura das cidades por onde passaram. No roteiro, o rio Itajaí-Açu (no lendário caminho do Peabiru, que ligava o Oceano Atlântico ao Pacífico), a Selva Saltenha (que guarda árvores tão altas quanto as do norte do Amazonas) e o sonhado Deserto de Atacama. IMPREVISTOS Entre os contratempos, Drika sofreu de dores fortes, e teve de obedecer à ordem médica de não pedalar por um dia e guardar a energia para encarar a Cordilheira. Malu também deu um susto quando "patinou" no cascalho sobre o asfalto, sofrendo uma pequena queda a 40 quilômetros por hora. Mas o caso mais sério foi o de Fábio Luiz Tavares da Silva, de 36 anos, que sentiu dores fortíssimas e teve de tomar soro e sedativos. Ele pedalou com dores fortes até que o doutor da equipe o encaminhou para um hospital. O diagnóstico foi pedra nos rins. Teve de voltar para o Brasil. O grupo enfrentou dias de chuva, depois do sol a pino. Muita lama, trechos inundados e muita água ainda escorrendo dificultaram o avanço dos Predadores. Ao redor, apenas deserto. O momento mais tenso foi quando enfrentaram raios, que caíram em grande quantidade e muito próximo deles. Mesmo assim, ninguém desistiu. Uma forte tormenta de granizo, seguida de vento, cobriu tudo de branco. A temperatura despencou para 5 graus. Sob frio e chuva, e sem condições de pedalar no meio do gelo, a equipe de apoio decidiu colocar tudo e todos nas caminhonetes. Dias depois, se depararam com a longa descida para São Pedro de Atacama. O que parecia ser um passeio transformou-se em uma dura jornada. O frio era tão intenso que os lábios ficaram queimados. Por segundos, chegou a nevar. Mas, no fim da tarde, foram agraciados com a vista das lagoas de lítio do Salar do Atacama. Um momento divertido para a turma. Os flamingos foram um espetáculo especial ao pôr-do-sol. Para valorizar - ou dificultar - os últimos quilômetros, nuvens enormes de poeira surgiram no horizonte. O vento ficou mais forte, obrigando o grupo a se esforçar ainda mais. Foi quando miraram o topo das montanhas e, no horizonte, surgiu a linha azulada do Pacífico. A jornada estava chegando ao fim. "De Balneário Camboriú até o Antofagasta foram vinte e quatro dias de muita luta e sacrifício, compensados pela alegria de realizar a travessia", relata Ramos. No abraço final, faltou o do Fábio, lembrado por todos. A lição que ficou para cada um é a de que sensatez e equilíbrio são a chave para alcançar objetivos.

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