Pais anônimos

Cresce a procura por sêmen de anônimos entre as solteiras. Mas falta material nos dois grandes bancos do País

PUBLICIDADE

Por Ciça Vallerio
Atualização:

.Banco de coleta de sêmen no Brasil ainda é um mistério. Com atuação discreta, de lá saem milhões de espermatozóides de doadores anônimos, que vão ajudar muitos casais com histórico de infertilidade do marido a realizar o sonho de gerar um filho. Embora seja esse o perfil de quem busca tal serviço, tem subido de forma expressiva o número de mulheres solteiras que procuram sêmen de doadores anônimos para se tornarem mães – conduta popularmente conhecida como "produção independente."

 

 

PUBLICIDADE

No Pro-Seed, um dos dois únicos bancos de sêmen do País, 80% dos clientes são casais, e 20%, mulheres sem parceiros, que decidem assumir sozinhas a gestação. Em 2007, elas representavam 10%, e, dois anos antes, nem eram computadas. "Recebo pelo menos três emails de solteiras por semana, querendo saber os trâmites para adquirir sêmen de doadores anônimos", conta Vera Fehér Brand, a mentora e diretora do Pro-Seed, empresa que distribui para várias clínicas de fertilização do País. "O problema é que falta doador: a demanda é grande, mas a quantidade de homens que nos procuram para esse fim é insuficiente."

 

Segundo dados do banco de sêmen que funciona no centro de fertilização assistida Fertility, nos últimos cinco anos, houve um aumento de 40% na busca por sêmen de doadores anônimos entre as mulheres solteiras – público que representa 10% dos atendimentos na clínica. "Elas acabam resolvendo a questão da maternidade de uma forma prática", afirma Edson Borges Júnior, diretor científico do Fertility. "São mulheres que se dedicaram à profissão, estão bem financeiramente, no limite da idade para engravidarem, mas sem tempo ou mesmo disposição para saírem atrás de alguém para ser o pai do seu filho."

 

Entre as interessadas, vale lembrar, existem também as homossexuais, que mantêm relacionamento afetivo com uma companheira e, juntas, planejam ter um filho. "Muitas, porém, com medo de enfrentar algum preconceito, não detalham suas vidas para os médicos", observa a especialista em reprodução assistida, Nilka Fernandes Donadio, diretora da clínica de fertilização Pró-Embryo. "Preferem dizer apenas que vão fazer uma produção independente."

 

Pedir "ajuda" de um amigo ou ex-namorado para se tornar mãe pode trazer mais dor de cabeça do que a opção de buscar um doador anônimo. Como ressalta Borges Júnior, a lei brasileira determina que o compromisso da paternidade seja assumido por quem gerou a criança. O que não acontece com doadores anônimos, já que a responsabilidade recai apenas sobre a mulher – dados pessoais de ambos permanecem confidenciais, segundo garantia da lei.

 

Com tantos pedidos de casais e de mulheres, doador de sêmen virou quase uma espécie rara. Conforme dados do Pro-Seed, entre 2002 e 2008, os pedidos aumentaram 60%. Nesse mesmo período, no entanto, o número de doadores anônimos caiu 20%. São poucos os que se dispõem a fazer o gesto solidário da doação, por vários motivos. Um deles está relacionado ao preconceito. Há quem relute em passar sua "carga genética" para alguém que desconhece, ou aceite a ideia de que seu espermatozóide vai gerar uma vida em algum lugar do País.

 

BATERIA DE EXAMES

Publicidade

Quem não se deixa levar por essas questões e decide doar seu sêmen acaba esbarrando em outro entrave: a triagem rigorosa. O doador precisa passar por exames, como o espermograma e o de sangue – este último, para detectar várias doenças, como as degenerativas, sífilis, HIV, hepatite, entre outras.

 

"O resultado do espermograma, que aponta a fertilidade masculina, precisa ser acima do padrão", explica Vera Fehér Brand, diretora do Pro-Seed. "O sêmen considerado normal tem acima de 20 milhões de espermatozóides por mililitro, mas só aceitamos doadores com mais de 80 milhões de espermatozóides por mililitro, pois, na manipulação desse material, muitos se perdem, o que dificultaria ainda mais a chance de fecundação de um óvulo."

 

Ficam excluídos da doação anônima, portanto, aqueles que não atingem a meta do espermograma e que têm doenças sexualmente transmissíveis, ou hereditárias, como alguns tipos de câncer, diabetes e problemas neurológicos, como esclerose múltipla, além de outras ocorrências, como hepatite. Só são aceitos doadores com idades entre 18 e 45 anos. A vantagem de passar por essa seleção minuciosa é ter em mãos, gratuitamente, os resultados dos exames. Vale destacar que não há compra de sêmen por parte dos bancos de coleta.

 

Esse assunto foi tratado de maneira equivocada na novela Caminho das Índias, da Rede Globo. No último capítulo, exibido em agosto, o personagem interpretado pelo ator Antonio Calloni confessou que ganhava dinheiro vendendo sêmen. Essa informação distorcida gerou transtorno para os bancos de sêmen da vida real: dezenas de homens congestionaram o telefone do Pro-Seed, dispostos a ganhar um trocado com seu fluido seminal. No País, contudo, é proibido vender sêmen.

 

PUBLICIDADE

"Ao contrário do Brasil, os Estados Unidos autorizam a venda de sêmen", conta Borges Júnior, do Fertility. "Lá chegam a pagar de 50 a 100 dólares por amostra, e é comum estudantes complementarem a renda dessa forma." Embora o sêmen seja coletado gratuitamente, ele tem um preço – e alto, diga-se. Casais e solteiras chegam a pagar em torno de mil reais por uma "dose". A explicação da cobrança é plausível: existe um custo alto para coletar, testar, manipular e armazenar o sêmen, garantindo segurança e qualidade do material. São processos que exigem alta tecnologia e profissionais especializados.

 

PASSO A PASSO

Resumidamente, funciona da seguinte maneira. Depois da triagem inicial, que inclui o preenchimento de um questionário, o doador anônimo é encaminhado para uma salinha privativa, onde é feita a coleta. Depois, o sêmen vai direto para um recipiente, seguindo para o laboratório, onde um biomédico inicia a manipulação do material, para separar espermatozóides "fortes" dos "fracos".

Publicidade

 

Além da escassez de doadores, no Brasil, há apenas dois bancos de coleta de sêmen de anônimos, o Pro-Seed e o Fertility, ambos em São Paulo e devidamente gabaritados pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária). Saem desses dois locais material para abastecer boa parte das clínicas de fertilização e hospitais de todo o território nacional. Alguns poucos, no entanto, mantêm uma estrutura básica para uso próprio.

 

O Pro-Seed começou a funcionar dentro do Hospital Israelita Albert Einstein. Durante 18 anos, a sua diretora, Vera Fehér Brand, não só coordenou como montou toda a sua estrutura. Quando o hospital resolveu priorizar o atendimento médico, o centro de reprodução humana foi desativado, e Vera deu prosseguimento ao banco de coleta fora do hospital.

 

Hoje, o Pro-Seed mantém também o banco de sêmen terapêutico. "Serve para homens que correm o risco de ficarem inférteis guardarem seu sêmen para a posteridade", explica Vera. São aqueles que precisam passar por tratamentos de quimioterapia ou que exercem atividades de risco.

 

Têm sido comuns, ainda, casos de homens já com filhos que, antes de serem vasectomizados, decidem resguardar alguns de seus espermatozóides, para a hipótese de desejarem ter mais rebentos no futuro. Para manter o sêmen resguardado por até 28 anos, o interessado deve desembolsar R$ 400,00 a cada semestre.

 

PRODUÇÃO INDEPENDENTE

"Quando estava casada, ser mãe não era ainda uma prioridade. Apesar de sempre ter sonhado com isso, queria investir na carreira. Depois, me separei e, já com a vida profissional estabilizada, voltei a pensar em filho quando fui morar junto com um namorado. Durante dois anos, tentei engravidar naturalmente, mas não deu certo. Então resolvi procurar um médico para descobrir o porquê, e os exames mostraram que não poderia engravidar. Fiquei tão frustrada e revoltada que decidi me separar novamente. Não toquei mais nesse assunto por muito tempo. Com terapia, tudo veio à tona, mas esbarrei em vários conflitos. Um deles é que não conseguia aceitar a ideia de ser mãe solteira. No divã, porém, fui percebendo que não precisava ficar presa às convenções sociais e com medo de sofrer preconceito para realizar meu grande sonho. Encarei um tratamento e, durante essa fase, pedi para que o meu namorado na época me doasse seu sêmen. Ele se esquivou, mesmo lhe prometendo assumir sozinha as responsabilidades, inclusive as financeiras. Ele já tinha filhos de outro relacionamento. Um amigo, sabendo da minha dificuldade, prometeu que doaria o seu sêmen, mas antes mesmo de fazê-lo, já começou a dar palpites sobre a criação do meu futuro filho. Com isso, refleti muito e decidi fazer uma fertilização in vitro com o sêmen de um doador anônimo. Tive apoio da minha família. Preocupada sobre as possíveis consequências disso para a criança, conversei com minha psicóloga. Queria saber se a doação lhe traria algum trauma. Assim como minha mãe, a minha terapeuta aconselhou sempre a contar a verdade: que desejei muito ser mãe e tive ajuda de gente generosa e disposta a ajudar mulheres como eu. Quando tiver meu filho, ele vai ter o que é de mais sagrado em uma família: muito amor."

 

Renata de Souza Santos, 35 anos, enfermeira

Publicidade

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.