O surgimento da cultura do canto

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Por Fernando Reinach
Atualização:

A capacidade do ser humano de se comunicar por meio da fala é determinada geneticamente. Todos nós nascemos com a capacidade de emitir sons usando nossas cordas vocais, herdamos a capacidade de ouvir esses sons e um cérebro capaz de associar os sons a significados. Mas a língua utilizada por esse aparato sofisticado é adquirida culturalmente e totalmente determinada pelo meio ambiente em que fomos criados. Uma criança nascida em uma família que fala português não tem nenhuma dificuldade em aprender alemão se crescer em uma cidade onde todos falam o idioma. Isso é confirmado pela observação de crianças que se desenvolvem sem interagir com outros seres humanos. Apesar de emitir sons, não desenvolvem linguagem sofisticada. Desde o aparecimento do homem, é provável que a transmissão cultural da linguagem tenha sempre ocorrido em paralelo ao desenvolvimento do aparato físico que permite que nos comuniquemos. TRANSMISSÃO INTERROMPIDA Mas o que ocorreria se a transmissão cultural de uma língua fosse interrompida? Imagine um experimento em que diversas crianças, criadas sem ouvir uma palavra sequer e incapazes de se comunicar, fossem colocadas em uma ilha por diversas gerações de modo a formar ao longo de séculos uma nova sociedade. Será que essa sociedade desenvolveria uma língua própria? Como seria essa língua? Um experimento assim nunca será feito com seres humanos, mas um grupo de cientistas fez o teste utilizando pássaros e analisando seu canto. O zebra finch (Taeniopygia guttata) é um pássaro australiano. Ele é criado em cativeiro e muito popular no Brasil, onde é chamado de mandarim. Tal como os seres humanos, esses pássaros herdam de seus pais a capacidade física de cantar, mas o canto (a língua) de cada animal é aprendido com os outros pássaros com quem convivem durante a infância. As populações de mandarim de diferentes ilhas do Pacífico cantam de maneira distinta, do mesmo modo que as diversas populações humanas falam diferentes línguas. Se um pássaro recém-nascido for levado de uma ilha para outra, vai aprender o canto da ilha em que cresceu e ensinar esse mesmo canto para seus filhos. Cientistas americanos criaram diversos desses pássaros sem contato com nenhum outro e analisaram detalhadamente o canto que emitiam. Os pássaros emitiam sons muito estranhos e diferentes dos cantos originais. Cada pássaro desenvolvia seu próprio estilo. No experimento seguinte, os cientistas utilizaram pássaros criados em isolamento como "tutores de canto" para filhotes recém-nascidos e descobriram que os filhotes adquiriram o modo de cantar dos professores. RETOMADA DE PADRÕES Mas o resultado mais interessante foi obtido quando um grupo de pássaros criados em isolamento total foi colocado em um viveiro também isolado de modo a formar uma nova colônia. Nesse experimento foi possível analisar o canto dos fundadores da colônia, de seus filhos, netos e bisnetos. O que os cientistas descobriram é que, ao longo das gerações, o canto dos pássaros foi se modificando e adquirindo muitas das características - como trilados e gorjeio - do canto dos pássaros encontrados nas diversas populações naturais. Na quarta geração, o canto dessa nova cultura, apesar de diferente da língua cantada pelas populações naturais, trazia muitas características dos cantos encontrados na natureza. Esse experimento demonstra que os traços principais da cultura do canto podem ser criados de novo em poucas gerações. É claro que o canto dos pássaros é muito diferente da linguagem falada pelos humanos, mas o experimento sugere que o ser humano talvez tenha a capacidade de recriar a linguagem falada caso nossa herança cultural seja perdida. *Biólogo - fernando@reinach.com Mais informações: Establishment of wild-type song culture in the zebra finch. Nature vol. 458 pág. 564, 2009

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