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O rei da ginga

Coreógrafo e dançarino autodidata, o carioca Carlinhos de Jesus encanta o público com seu talento

Por Vera Fiori
Atualização:

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Ao contrário do que diz a música de Chico Buarque, quem for à Lapa em busca da tal malandragem não vai perder a viagem. No tradicional reduto da boemia carioca, com sorte, o turista poderá cruzar com um personagem que remete ao bom e velho malandro. De sapatos bicolores, terno de linho branco, flor na lapela, camisa listada e chapéu panamá, o ator e coreógrafo Carlinhos de Jesus, 57 anos, gosta da comparação. Para quem não sabe, o professor ensina: "Malandro que é malandro não anda duro como um machão. Ao contrário, tem uma ginga característica. Até os braços, enquanto fala, toca o ombro do seu interlocutor e se posiciona de viés, com o olhar de quem confia desconfiando."

 

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A diferença entre Carlinhos e o malandro do Rio antigo é que, no lugar da navalha, sua arma é a arte de seduzir pela dança. Até mesmo uma gélida plateia de executivos chineses, para a qual se apresentou há alguns anos com sua companhia de dança, acabou contagiada pelos seus passos. Figura emblemática do Rio, Carlinhos desliza, leve e elegante, como Fred Astaire, seja qual for o ritmo. Pode ser bolero, samba de gafieira, forró ou salsa, cujas coreografias levam seu tempero especial.

 

Nascido em Marechal Hermes e criado em Cavalcante, subúrbio carioca, o filho de seu Amarante, um político respeitado na comunidade, e de dona Neusa, uma dona de casa que saía pela sala dançando salsa, conta que a dança entrou na sua vida de forma natural e intuitiva. "Meu pai me levava a festas que sempre acabavam em roda de música. Afastavam os móveis e os tapetes, improvisando uma pista de dança, e eu gostava de observar os adultos dançando." Aos 8 anos, como conta no seu livro autobiográfico Vem Dançar Comigo (editora Gente), sambava como gente grande. A estreia aconteceu no carnaval de 1961, dançando gafieira com uma negra linda, pela Escola de Samba Em Cima da Hora. "Como eu era muito mais baixo, dançava com o rosto colado no peito dela."

 

Conta que fazia muito sucesso com as meninas. "Organizava festas, ensinava os passos aos meninos e dançava com aniversariantes." Amarantinho, como era chamado, fazia de tudo para entrar nos bailes. Como era menor, driblava a segurança, entrando por uma fresta do banheiro das mulheres. "Magrinho, eu passava facilmente."

 

Enfrentou preconceito e resistência. A família preferia um filho médico ou advogado a um filho dançarino. "Curso de dança, nos anos 50 e 60, nem pensar. Meu pai me matriculou numa escola de judô." Chegou a cursar Direito, mas resolveu mudar para Pedagogia, em função do trabalho que fazia com meninas infratoras na Fundação Estadual de Educação do Menor (Feem), do Rio de Janeiro. "Desenvolvia atividades ligadas ao teatro, música, dança, e envolvia as meninas na montagem de peças e apresentações musicais."

 

Cartão de ponto. Trabalhou como funcionário público por mais de 20 anos, mas sem deixar de ir às gafieiras nos fins de semana – entre elas, a tradicional Estudantina. "Nas reuniões dançantes em casas de amigos, as pessoas pediam que ensinasse alguns passos, e assim fui dando aulas particulares. Como os pedidos aumentavam, aluguei uma sala, que ficou pequena. No começo, era uma noite, depois, duas, três, até que tive de optar entre o emprego estável e o que mais me dava prazer na vida." Assim nasceu a Cia. de Dança Carlinhos de Jesus, hoje com dois endereços no Rio e filiais em Vitória e Curitiba. "A dança foi o maior passe da minha vida." Diz que a mulher, Rachel, médica e mãe de seus dois filhos, Carlos Eduardo e Tainah, foi grande incentivadora.

 

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Mas a grande virada, conta, foi uma oportunidade de ouro, que lhe deu projeção nacional, alavancando a carreira. Em 1985, foi chamado para dar aulas de ginga e malandragem para o ator Edson Celulari, no filme A Ópera do Malandro, de Ruy Guerra. Com a performance, conquistou o papel de um dos malandros no filme. "Nas filmagens, conheci Elba Ramalho e, entre um take e outro, a gente ficava dançando de farra. A amizade resultou numa parceria em shows por quase 10 anos." As portas se abriram e ele foi requisitado para fazer a preparação corporal de artistas nacionais e internacionais. Participou de filmes, musicais, novelas e videoclipes.

 

A maior emoção da carreira foi ver sua vida contada na avenida pelas escolas de samba Em Cima da Hora, Santa Marta e Imperatriz Leopoldina, de Porto Alegre. Ainda realizou um grande sonho, o de contracenar no palco com a bailarina Ana Botafogo, unindo o clássico e o popular no espetáculo Isto é Brasil. Segundo Carlinhos, as pessoas encontram na dança socialização e conforto terapêutico. Com sua arte, ele próprio superou adversidades, como a perda dos pais e problemas de saúde.

 

Além de projetar a dança de salão, Carlinhos virou empresário. É sócio do Lapa 40 º Sinuca & Gafieira, bar que fica na Rua Riachuelo, coração da Lapa, um dos cartões postais do Rio de Janeiro. E por falar em Rio, Carlinhos rasga a seda para a Cidade Maravilhosa: "O Rio, apesar de suas mazelas, é como uma morena bonita andando na praia, seduzindo as pessoa com seus encantos naturais."

 

 

 

Nos palcos da vida"Ganhei fama como dançarino graças à dança de salão, considerada durante muito tempo uma arte marginal. Uma das grandes vitórias que conquistei foi ter conduzido a dança de salão a seu merecido lugar de destaque e respeito."

 

"Tenho uma certa nostalgia de não ter nascido na época de Cartola. Queria ter conhecido esse gênio da música, ter sido seu companheiro, conversado e aprendido com ele. Como teria sido fantástico ter visto Cartola cantar de pertinho."

 

"Não fiz o curso de dança que tanto queria, mas não culpei ninguém por isso nem fiquei me remoendo, lamentando minha sorte pelos cantos."

 

"As grandes oportunidades costumam aparecer no momento certo em nossas vidas. A questão é que nem sempre temos a coragem de agarrá-las."

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"Quando danço, não sou homem nem mulher. Sou um ser assexuado. Se interpreto um homem passional num tango, deixo que o instinto me guie. As mulheres que me veem dançar enxergam muita masculinidade. Já os homens podem ver certa feminilidade."

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