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O museu do ciúme

Rosiska Darcy de Oliveira fala sobre o sentimento nefasto e afirma que 'ciúme não está em extinção'

Por Rosiska Darcy de Oliveira
Atualização:

Querem me convencer de que o ciúme saiu de moda . Ao que parece, se fosse palpável, estaria no museu, exibidas belas peças de ciúmes através dos séculos, com destaque para o lenço de Desdêmona numa caixa de vidro iluminada. Na seção pop art, a reconstituição de um bar da avenida S. João, aquele em que certa noite houve uma cena de sangue, que Maria Betânia canta e conta como ninguém. Em algum lugar a caixa com as cinzas de Jules (ou foi Jim?) nas mãos de Jeanne Moreau. E uma sala inteira dedicada aos Pierrôs de todos os tempos. Hoje mudam-se os corpos, mudam-se os desejos e, civilizadíssimos, os abandonados são padrinhos nos novos casamentos dos antigos amantes, brindando com champanhe os equívocos e os esquecimentos. Um corpo se enganou de corpo, e nada mais. Porque só eu não acredito em nada disso? Vejo em todo canto a presença noturna do ciúme, que embaça rostos distraídos. Nasci com um detector secreto que capta desesperos surdos e mentiras bem guardadas. Por exemplo, quando alguém, pela terceira vez, passando em frente a um prédio, olha fixamente uma janela e ao mesmo tempo um relógio, é certo que procura alguma coisa, algo que se passa naquela hora, atrás daquela janela. Nos tempos do ciúme, a história seria assim: almoçando juntos, quando ardia de desejo e mal escutava o que ela dizia, entreouviu que ela herdara da mãe um apartamento que, misteriosamente, mantinha vazio apesar das dificuldades de dinheiro. Deu-lhe um dia uma carona até a esquina do prédio, deixou-a ali uns quinze minutos antes daquela hora fatídica que o assombrava desde então, hora em que a luz estava sempre acesa em alguma peça dos fundos - os quartos são sempre nos fundos. Passou a fazer compras intermináveis no mercado em frente, naquela hora, até que a luz se apagava e, então, inexplicavelmente, fugia, maldizendo suas dúvidas, incapaz de pagar para ver. O ciúme é assim, um escravo de si mesmo, da incerteza de que se alimenta, um vício no sofrimento, um exercício de imaginação incontida que, em certos casos, deu à luz bons escritores. Em outros deixou só seqüelas, como nesse homem, que, para o resto da vida, evitou passar por aquela rua. O ciúme não está em extinção. Percebo a mulher que disfarça bem a angústia de comparar-se com outra que sabe ser mais bonita, e passa a festa toda com um jeito cool, mas um olhar aflito, fazendo a ponte entre ela e seu namorado, adivinhando ou inventando o que vai na alma do sujeito que, preocupado com o resultado do futebol , ignora a sedução ameaçadora que as mulheres bonitas exercem sobre as outras. Traz à baila o assunto aparentemente inocente em que aparece a todo instante o nome maldito só para, olhando no fundo dos olhos do amante, testar se ele pisca mais depressa. O ciúme trabalha no detalhe, descreve cenários, controla as horas, os dias da semana, guarda no coração como uma farpa os momentos que evocam o abandono. O ciúme tem cheiro que machuca e fundo musical que faz chorar. É um grande autor de romances de terceira, capaz de inventar uma vida inteira, personagens tirados do nada que se movimentam como marionetes, a quem o enciumado dita as falas e sobretudo as respostas, lá onde se confessa a traição. O ciúme é um mundo à parte, um inferno privado onde alguém se instala para viver uma vida de voyeur. Esse mundo tem uma lógica própria, perversa, em que a relação ameaçada pelo desgaste e pelo tédio reacende na suspeita e no ódio. O ciúme faz milagres, ressuscita amores mortos, ou enterra de vez, mas foi e é um perigoso protagonista do amor. Ele dispensa a vida real, desconhece as provas, cria suas próprias evidências. Otelo nunca foi ciumento, porque precisou de um lenço perfeitamente dispensável a um enciumado que se preze. Na contramão das melhores intenções, sobrevive a fatalidade do ciúme, inscrito em nosso destino, herança maldita daquele dia atroz, daquela cena primordial quando todos nós descobrimos que, por nossa causa, papai e mamãe tinham transado. No museu do ciúme reina essa cena na sala principal. * Rosiska Darcy de Oliveira é escritora; rosiska.darcy@uol.com.br

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