O desafio do casamento

O psiquiatra Eduardo Ferreira Santos discute a viabilidade do casamento, tema do seu novo livro

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Por Redação
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Entre os antigos nobres, o casamento nada tinha a ver com amor. Tratava-se de um contrato de negócios, que trazia benefícios para as famílias envolvidas. Os cônjuges, por sua vez, buscavam as delícias da paixão em outros cantos escuros. Séculos mais tarde, as mulheres tinham lugares bem definidos: dentro da cozinha, reinando no lar e criando os filhos. Hoje, com a igualdade de direitos entre os sexos e a diversidade de papéis, o casamento tornou-se uma instituição ainda mais complexa -- e delicada. Apesar do número galopante de divórcios, a maioria ainda deseja um relacionamento estável, no qual possa trocar experiências, dar e receber afeto, ter intimidade e saborear as pequenas delícias de um cotidiano recheado de amor. Mas o casamento convencional ainda é possível? Ou é um costume demodê que já não cabe na vida contemporânea? O psiquiatra e terapeuta Eduardo Ferreira Santos, do Hospital das Clínicas, acaba de lançar um livro sobre o tema: Casamento, Missão quase Impossível (Editora Claridade). Com 30 anos de experiência em terapia individual, de casais e famílias, ele não propaga fórmulas mágicas nem se ancora no otimismo. "A ambigüidade do título (do livro) é proposital, pois não acredito que hoje as pessoas tenham maturidade e paciência para realizar permanentes correções de rota em seus relacionamentos. Estamos vivendo, infelizmente, uma época de consumo descartável, incompatível com as exigências pessoais de uma relação ?até que a morte nos separe?", diz, realista. "Para tornar um casamento possível é preciso muita, muita, mas muita paciência, criatividade, afeto, responsabilidade e diálogo." Em seu currículo pessoal, tem um divórcio doloroso. Mas vive um novo casamento, que acaba de completar 20 anos. "Há muito trabalho a ser realizado para que ele se torne ainda melhor." Gosta de se debruçar sobre as questões conjugais: é autor também de Ciúme - o Medo da Perda (Ática), sentimento que justifica com a baixa auto-estima. Aborda temas como a comunicação nos casamentos, rotina, brigas, falta de respeito, e conclui que a maioria ainda projeta no parceiro a imagem de um "salvador", que completará a individualidade não desenvolvida. Em sua opinião, o único caminho para um casamento saudável é manter, e desenvolver, a própria individualidade, evitando ficar preso à redoma do "você e eu". Uma de suas dicas práticas chama a atenção: recomenda fazer um contrato escrito, bem no começo do relacionamento, sobre o que cada parceiro espera do outro e o que pode oferecer. "Afinal, o casamento é o único contrato, supostamente vitalício, que a pessoa assina sem saber claramente quais são as cláusulas que ele contém - sociais, econômicas e, principalmente, emocionais." Até que ponto a falta de autoconhecimento gera problemas nos casamentos? Particularmente, no Mundo Ocidental, a clássica valorização do ter em lugar do ser tem levado muita gente a se esquecer do seu principal veículo da existência: si mesmo. De modo geral, as pessoas estão preocupadas com valores materiais e estéticos, se afastam cada vez mais do seu verdadeiro ser, numa busca desenfreada pelo poder, dinheiro e beleza. Com isso, deixam de lado seus mais profundos sentimentos, crenças e, dessa forma, não conseguem saber, de fato, o que querem, o que precisam, o que as tornaria mais felizes. Se cada pessoa parasse um minuto só para olhar em seus próprios olhos no espelho, ao invés de mirar em suas formas corporais, poderia reconhecer sua verdadeira essência, dar mais sentido à sua existência e partir em busca de seus verdadeiros atributos, suas características, sua forma de ser no mundo. À medida que isso não acontece, muitos são os que vagam em busca de uma satisfação compensatória, e esperam encontrar em um parceiro aquela parte de si próprio que desconhecem e da qual precisam. Na sociedade moderna, mulheres e homens tendem a morar sozinhos antes da experiência do casamento. Isso facilita a convivência depois? Teoricamente, deveria ser assim, mas o que se observa é que homens e mulheres estão procurando alguém à imagem e semelhança dos pais ideais, alguém que possa lhes dar o acolhimento que tiveram ou não na infância. Isso pode ser comprovado pelo famoso Complexo de Cinderela e pelo Complexo de Peter Pan. Ainda que bem-sucedidas em suas carreiras, as mulheres ainda sonham, mesmo que inconscientemente, com o Príncipe Encantado, provedor e acolhedor. E os homens com a figura da Grande Mãe, fonte de apoio e satisfação de todas as suas necessidades. Costumamos projetar nossos desejos e fantasias sobre o parceiro. Como se libertar desse tipo de comportamento? E até que ponto as projeções sabotam os relacionamentos amorosos? Ao projetar no outro nossas expectativas, cresce a posição de passividade e dependência, cristalizando o papel de "não ser" para "ser no outro". Em primeiro lugar, é preciso ver a si mesmo para, então, desenvolver a capacidade da empatia, que é o verdadeiro conhecimento do outro. Como não se sabe sequer quem se é, procura-se no outro a resposta para uma pergunta que não está nem elaborada, e a chance de frustração por não obter as respostas é muito grande. De que maneiras é possível escapar da armadilha dessa co-dependência? Há muitos anos, o psiquiatra Carl Gustav Jung falava sobre a importância de aprender com as diferenças e não apenas utilizar-se dos atributos do outro. Para isso, é muito importante estar atento a si mesmo e ao outro, e procurar assimilar o que o parceiro possa ensinar em relação à vida. No entanto, é importante que ambos estejam sintonizados no mesmo canal de aprendizagem, respeitando e procurando verdadeiramente se entender. Quais são as compatibilidades mais importantes para que a relação decole? E quais são as diferenças que criam abismos na relação? Por mais paradoxal que possa parecer, são as diferenças que criam os elos mais profundos, pois, inconscientemente, procuramos no outro aquilo que não temos (ou não somos) em um movimento natural de completude. O mais importante é, então, ter bastante claro o que sou e o que quero do meu parceiro. A partir daí, e em comum acordo, o casal pode crescer junto, mantendo a individualidade de cada um e a comunhão. Em sua opinião, quais são os fatores essenciais para manter uma boa comunicação no relacionamento? As pessoas não sabem mais o que significa o verdadeiro diálogo, isto é, o ouvir e responder o que o outro está dizendo, estabelecendo uma verdadeira conversa. Fala-se muito, mas diz-se pouco! Comenta-se sobre fatos e coisas, mas esquece-se de falar de si mesmo e das colocações do outro. Parece até que cada um está falando sozinho. Questionar, entender, esclarecer o que cada um está querendo dizer de verdade exige muita paciência e vontade política, além do próprio amor, que deveria selar uma relação. Quais são as dicas que o senhor daria para que não se inicie a perda de respeito mútuo? Acredito que, mesmo antes de se começar o relacionamento, cada um deve deixar suas posições e pretensões bem claras. Ocorre que, na pressa para realizar o casamento, muitos casais se formam no mais absoluto desconhecimento do outro. Muitos têm medo de se expor e perder a oportunidade de concretizar a união. E penso que as uniões realizadas desta forma, com um se submetendo ao outro, são aquelas mais duradouras, porém as mais infelizes. Até que ponto a infidelidade faz parte hoje da maioria dos casamentos? Sentir-se atraído por outra pessoa não significa necessariamente que se vá deixar levar por esse desejo. Pode-se comparar a uma pessoa que tem um automóvel maravilhoso, mas que "enche os olhos" ao ver um outro automóvel tão ou mais maravilhoso que o seu. Pode-se e deve-se admirar, mas a infidelidade só acontecerá se a pessoa estiver insatisfeita com o seu próprio carro. Embora muitos neguem de pés juntos, observo em minha prática clínica que a infidelidade, ainda que eventual e descompromissadamente, ocorre com a quase totalidade das pessoas. Na verdade, as mulheres, ainda presas a velhos dogmas, traem menos, mas, mesmo assim, são tão infiéis quanto os homens. E quanto à rotina? Como lidar com ela sem cair no tédio? É muito difícil, principalmente com o passar dos anos, o nascimento e a criação dos filhos e a competição da vida moderna. Mas se o casal tiver essa proposta bastante firme e não se deixar levar pelo comodismo, sempre é possível inovar e procurar, por meio do diálogo constante e do bom humor, construir uma relação gostosa de se viver, ao invés de simplesmente cômoda.

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