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O carnaval é uma festa virtuosa

Por Rosiska Darcy de Oliveira
Atualização:

De uns dias passados na Europa, próspera e organizada, trouxe eu uma perplexidade: por que todos falam do Brasil com carinho e uma pontinha de inveja? Não sabem o que rola por aqui? Por que sonham todos, do banqueiro ao filósofo, do operário à garçonete, com o carnaval que viram na televisão e que habita o imaginário com a petulância de um sonho recorrente. Não morro sem ir lá, suspirou a amiga, tirando minhas malas do carro, na porta do aeroporto, ela que sabe que por nada nesse mundo eu deixaria de voltar para o carnaval, deixando para trás a neve espessa, as estradas bem traçadas, a cultura, a civilização, a justiça social, a ordem pública, para mergulhar, atarantada, no caos nosso de cada dia. O carnaval tem a má fama de ser a festa da luxúria. Não é, ou é, no que a luxúria tem de mais sagrado. O carnaval é uma forma de meditação pelo avesso, uma afirmação do sagrado pelo que há de mais profano. Um dar graças a deus ou, no caso, talvez seja melhor dá-las ao diabo, pelo verão que nos autoriza a nudez, pela nudez que nos impele ao desejo, pelo desejo que acena com a alegria, pela música que batuca no coração, pela liberdade de pular e rebolar sem que ninguém censure. Afora, é claro, algumas autoridades religiosas que, no exercício de suas funções, querem nos lembrar da morte, do medo da maldita, que é, no fundo, o sustentáculo do seu poder. Poucos lhes ouvem. Na rua, a massa em suposta crise de loucura coletiva afirma, nesses dias, o cúmulo da lucidez sobre a vida. Porque é da vida que se trata no carnaval e com grande sabedoria. Esse mundo de pernas pro ar sabe tudo sobre si mesmo. Sabe que ninguém é autêntico quando fala em primeira pessoa mas que, ao escolher uma máscara, vai se revelar. Sabe, com Oscar Wilde, que as máscaras contam muito mais que as autobiografias. E, com Fernando Pessoa, que cada um é muitos. Que, seja você quem for, seja o que deus quiser. Por isso segura o meu pierrô molhado e vamos ladeira abaixo. E não se esqueça de mim, nem de Caetano, nem de Chico, nem de todos os sábios e profetas, que pontificaram em muitos carnavais, deslizando sobre as cristas das ondas do mar dessa loucura. Há tanta sabedoria no carnaval e um silêncio estridente que ninguém ouve em meio ao burburinho das escolas que desfilam hiper-modernas, dos blocos resistentes que insistem em reviver um amor que se acabou, em meio à melancolia de foliões que ainda vagam sozinhos pelas calçadas, as asas quebradas pelo cansaço, depois de uma noite de vôo cego sobre a avenida. E ninguém ouve o silêncio em que a vida medita sobre si mesma e sabe que tudo é fantasia, que a vida é sonho, que ela mesma é mais inventada do que real, apenas para levar a cabo o espetáculo que se quer o mais esplêndido, pra tudo se acabar na quarta-feira. Em uma quarta-feira ou outro dia qualquer da semana. Porque tristeza não tem fim e porque a vida dura só um dia, Luzia, e não se leva nada deste mundo. Ninguém ouve o silêncio do carnaval, nem reconhece seus rituais ancestrais, arrastados pelos séculos, trocando de fantasia em cada cultura, esses rituais de uma festa dita pagã em que deuses múltiplos insistem em desfilar, cada um certo da sua onipotência, da liberdade infinita que é ser qualquer coisa, qualquer um, second life em carne e osso, muito mais arrojada, provocante e arriscada que qualquer aventura virtual. Meditação, sabedoria e silêncio, essas as três virtudes insuspeitas do carnaval, submersas no mar de vulgaridade que a televisão transmite e que, por insondável mistério, encanta o mundo e atrai a nossos pífios aeroportos multidões de louros que querem ser mulatos, ricos que mitificam a pobreza, gente em busca de uma vida perdida em alguma outra encarnação e que só reaparece, reencarna, nesse clima místico em que tudo é permitido. O carnaval é uma festa virtuosa, o que ignoram os que pensam ter o monopólio da virtude quando, de fato, detêm o da caretice. O carnaval é sobretudo um grande mistério, uma gigantesca máscara que encobre o rosto trágico dessa nação alegre, colorida de paetês verdes e amarelos, o rosto trágico do Brasil. *Rosiska Darcy de Oliveira é escritora; rosiska.Darcy@uol.com.br

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