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Na contramão do conservadorismo

Aos 87 anos, o psicanalista José Ângelo Gaiarsa defende uma educação diferenciada desde o berço

Por Fabiana Caso
Atualização:

Durante dez anos, ele propagou suas idéias num programa da TV Bandeirantes. Cativou amor e ódio das telespectadoras, mas ficou conhecido para sempre por suas posições polêmicas: defende o relacionamento aberto, questiona a idéia de a maternidade ser uma maravilha absoluta, condena a instituição do casamento e da família e credita os maiores problemas do ser humano à convivência. "Ouvi por mais de 30 anos reclamações sobre filhos, mães, pais, cunhadas, etc.", resmunga, assertivo, o psicanalista paulista José Ângelo Gaiarsa. Aos 87 anos, ele mora numa rua calma da zona oeste da capital paulista. Da sala decorada com plantas, paredes verdes e móveis de vime, a janela mostra a cidade. É dessa colina urbana, onde tudo parece estar no devido lugar, que continua escrevendo seus livros, com o dedo em riste para o conservadorismo social. Entre os mais de 30 livros publicados, uma boa pedida para conhecer sua linha de pensamento é Meio Século de Psicoterapia Verbal e Corporal (Editora Ágora), cujo lançamento se deu em comemoração aos seus 50 anos de carreira. Inquieto, continua escrevendo e analisando a sociedade, talvez de forma ainda mais cética. Já está sendo impresso pela Editora Ágora o livro Inconsciência Coletiva, no qual Gaiarsa revisa suas interpretações para as teorias do psicanalista austríaco Wilhelm Reich. Além disso, ele acaba de concluir o manuscrito de Manifesto da Revolução Pedagógica (Ágora), inédito. E tem mais dois títulos previstos para serem lançados entre 2008 e 2009: Educação Familiar e Escolar para o Terceiro Milênio e Formando Agentes de Transformação Social, todos pela Editora Ágora. Mais do que validar a crença de que uma sociedade com mais e melhores orgasmos comporia um mundo mais feliz, ele reforça a importância do conceito de Reich para a expressividade de todos os movimentos do ser humano. Depois de décadas de prática psicanalítica, Gaiarsa já não atende pacientes no consultório - anda desencantado com o poder transformador da terapia. E confessa que consegue conversar verdadeiramente apenas com quatro ou cinco amigos. Hoje, defende veementemente uma educação que promova a autonomia desde o berço: acredita que este é o único remédio para as pessoas libertarem-se das teias do conservadorismo social. Afinal, ressalta que o cérebro desenvolve 90% do seu volume dos 0 aos 6 anos - e este trabalha por imitação dos exemplos. Gaiarsa só tem elogios para o trabalho dos pesquisadores americanos do Instituto para o Desenvolvimento do Potencial Humano, sediado na Filadelfia, o qual tem como um dos fundadores o fisioterapeuta Glenn Doman. Segundo informa, lá eles promovem a estimulação "correta" de movimentos autônomos desde o berço e, a partir daí, há uma correspondência do desenvolvimento da inteligência e da autonomia das crianças, incluindo o emocional. "Com exercícios de motricidade e equilíbrio se dá a noção de liberdade e autonomia. Se a mãe colocar o seu bebê de bruços e deixá-lo bastante tempo no chão, ele já vai entendendo que tem o poder da locomoção. Se ela colocar objetos à vista, ele já vai aprendendo a escolher", explica. "Também é importante cultivar o agarramento das coisas, mas, aos 3 ou 4 meses, a mãe deve incentivar que o bebê solte os objetos depois de agarrá-los. Se não fizer isso, a pessoa ficará agarrada a vida inteira: à esposa, à mãe, etc." Uma criança estimulada dessa forma desde o nascimento não vai se identificar com todo mundo, acredita Gaiarsa: - Com a psicoterapia, a média dos resultados é desalentadora. Se a estrutura do cérebro já está malformada, é difícil modificar o padrão de pensamento. Eu mesmo trabalho com a psicoterapia há 60 anos, e fiquei apenas regular. Não é totalmente inútil, é bom ter alguém para ouvir você, mas isso não modifica comportamentos fundamentais. Não acho a psicanálise brilhante. É mais produtivo retificar o corpo e seus movimentos do que a mente. Está curioso para ver os desdobramentos da entrada maciça da tecnologia na vida infantil. O tema está no seu novo livro. "Como os adultos querem ensinar algo às crianças se têm uma vida que é uma merda?", exclama. "Hoje as crianças já estão vendo na TV e na internet o mundo que vão ter, e sabem que a autoridade dos adultos é uma piada." AMOR LIVRE Gaiarsa tem experiência no tema casamento: viveu cinco uniões. A primeira delas aconteceu nos moldes convencionais: casou-se na igreja, ficou 25 anos ao lado da esposa e teve quatro filhos. "Passava muito tempo pensando nos problemas e dificuldades do meu casamento, mas quando chegava ao consultório, ouvia as mesmas queixas dos pacientes sobre a vida conjugal. Então percebi que meu problema não era só com aquela pessoa, era com o casamento em si. Só se ameniza uma relação se houver liberdade", comenta. "Toda sociedade, no mundo inteiro, perpetua a história do casamento: é uma mentira que é dita tantas vezes que acaba virando verdade. Por isso também é tão difícil se separar: até hoje a pessoa precisa prestar contas para toda a sociedade." Separou-se, e com as mulheres que teve depois, colocou em prática a idéia do amor livre, vivendo relacionamentos abertos. Não acredita na monogamia nem em um amor que barre a possibilidade de outros amores possíveis. Costuma dizer que o amor livre funcionou melhor para as ex-esposas do que para ele próprio. Hoje, está solteiro novamente. Exalta-se quando o assunto é família e sexualidade. Apesar de hoje existir maior abertura e liberdade para se discutir sexo, acredita que a repressão continua acentuada - e que só se começou a falar mais sobre o assunto depois da descoberta da ameaça de morte pelo vírus HIV. "A família nunca tem sexo. Ainda não há uma mãe que fale com naturalidade para a filha sobre a transa com o namorado, sobre quanto prazer o corpo pode proporcionar", comenta. "Quando falam de sexo com os filhos, geralmente, ainda recorrem àquele discurso de usar camisinha para se proteger das doenças ou da gravidez. Nunca ouvi falar de um pai ou mãe que tenha dito à filha para se masturbar para conhecer o próprio corpo e o prazer que ele pode lhe dar." Aliás, Gaiarsa credita o número alto de adolescentes grávidas ao fato de as mães nunca terem falado sobre masturbação com as filhas. "Quando a menina vivencia o prazer, é tão bom e inédito que ela não controla suas emoções e faz mesmo sem camisinha." Ressalta que, numa média de dois metros de pele, há cerca de 500 mil pontos sensíveis de prazer. "O corpo é um playground do tamanho do universo, independentemente do orgasmo. As pessoas estão a uma distância incrível do que o prazer erótico pode dar. Ainda se aproveita muito pouco.

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