Morre Dupas, o analista visionário

Economista, editor e colaborador do Estado, que sofria de câncer, foi enterrado ontem no cemitério Gethsemani

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Por Antonio Gonçalves Filho
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Seu último livro, O Incidente (Editora Paz e Terra, 2008) fala de turistas presos no topo de uma montanha em virtude de forte nevasca. Obrigados a passar a noite numa cabana, eles acabam contando histórias pessoais para depois partir incógnitos. Para familiares e amigos próximos, parece ter sido essa a metáfora que o analista político, economista, escritor e colaborador do Estado Gilberto Dupas escolheu para anunciar a própria morte: ele faleceu às 5h30 da manhã de ontem, aos 66 anos, vítima de câncer no pâncreas e de um provável acidente vascular cerebral. Com tantos livros sobre globalização, ética, poder e conflitos internacionais, Dupas, enterrado ontem, no cemitério Gethsêmani, preferiu deixar sua última mensagem neste livro de ficção - o segundo de sua carreira, depois do romance Retalhos de Jonas (Paz e Terra, 2001). A morte interrompe, assim, uma promissora carreira literária, não fosse o autor já reconhecido como um dos mais lúcidos analistas do turbocapitalismo e seus efeitos nefastos. A literatura era para ele seu "pequeno refúgio sereno", o porto seguro onde encontrou a solução para alguns enigmas do mundo contemporâneo. Em O Incidente, após confessar medos e obsessões na escuridão, os turistas acidentais viram novamente rostos anônimos à luz do dia, recompondo-se do desconforto de suas revelações íntimas. Entre todos os relatos de O Incidente destaca-se o de um narrador da classe média que batalhou para ter uma vida confortável e vive o conflito de ser da elite num país de deserdados. É possível identificar nesse narrador o desconforto de um homem com ideais de "esquerda", como Dupas, que na juventude lutou contra a ditadura militar e, maduro, aos 39 anos, aceitou ocupar altos postos no governo Montoro - ele foi presidente da Caixa Econômica do Estado de São Paulo (hoje Nossa Caixa). Nascido em Campinas em 1943, foi talhado para assumir o papel de líder desde sua admissão na Escola Politécnica da USP, aos 19 anos. Logo cedo percebeu que seu caminho não seria o de construir pontes de concreto, mas pontes sociais, o que o levou da Engenharia para a Economia. Formado, assumiu o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) do Ministério do Planejamento, em 1968. Conseguiu atravessar o governo Médici (1969-1974) para se tornar o representante do Ipea junto ao Banco Mundial, em 1970. Depois, aceitou a oferta de reorganizar um banco - ele dirigiria outros dois, acumulando experiência para escrever sobre as contradições do sistema capitalista. E escreveu bastante: foram dez livros seus e outros 30 coordenados por ele, além de 700 artigos escritos entre 1983 e esta semana (leia abaixo seu último texto para o Estado, que seria publicado neste sábado). No derradeiro artigo,faz um alerta sobre a natureza pós-humana forjada por defensores do biocapital, que promete imortalidade aos que possam pagá-la. Em 1997, já falava da perversa ação dos "corporate killers", que ajustam a estrutura das corporações à custa de demissões. Como um renascentista, Dupas se interessou por tudo o que era humano, especialmente pela ciência pós-moderna como instrumento do poder. Morre o profeta visionário. Fica a obra em sua racionalidade.

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