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Morre Boal, o reinventor do teatro

Ele dirigiu o Arena, criou o Teatro do Oprimido, ensinou atores ingleses e até os esquimós seguem seu método

Por Beth Néspoli e Clarissa Thomé
Atualização:

O diretor de teatro, dramaturgo e ensaísta Augusto Boal morreu às 2h40 de ontem, aos 78 anos. Ele estava internado no Centro de Tratamento Intensivo do Hospital Samaritano, no Rio, desde terça-feira. De acordo com o hospital, a causa da morte foi insuficiência respiratória, em decorrência de leucemia. Boal já havia passado por outras internações na instituição por conta do câncer que, segundo seu médico, Flávio Cure Palheiro, teve evolução bastante agressiva. "Meu pai sofria de leucemia há alguns anos. É uma doença que deixa a pessoa imunodeficiente e ele teve outras complicações", comentou o filho do diretor, o escritor Julián Boal. O corpo do dramaturgo será cremado hoje às 17h30 no Cemitério São Francisco Xavier, no Caju, região portuária. Não haverá velório. O poeta Ferreira Gullar foi surpreendido pela notícia da morte do amigo. Lembrou que no exílio, em Buenos Aires, nos anos 1970, "encontrava acolhida na casa dele e da Cecília (mulher do diretor), pessoas muito fraternas e solidárias". Num dos encontros na residência de Boal, Gullar leu pela primeira vez o Poema Sujo, hoje um clássico da literatura brasileira. Famoso Augusto Boal era. E muito. Mundialmente. Seu Teatro do Oprimido, metodologia que desenvolveu por volta de 1973, combinando drama e ação social, foi aplaudido e adotado não só no Primeiro Mundo como em lugares remotos do planeta. O próprio Boal gostava de dizer que o Teatro do Oprimido era o único método teatral inventado no hemisfério sul e adotado no Hemisfério Norte. Mas já bastaria o período anterior, de 1956 a 1971, para colocá-lo entre os diretores mais importantes do teatro brasileiro. Foi nesse período que dirigiu o Teatro de Arena, em São Paulo, a convite do crítico Sábato Magaldi. Apesar de ter 19 livros traduzidos em 21 idiomas e grupos atuando a partir desses livros em incontáveis palcos - há mais centenas de grupos de Teatro do Oprimido registrados na África, nos EUA, no Canadá, na Ásia, América Latina e até entre esquimós -, Boal sentia que seu trabalho era visto por muitos como marginal, ainda que ele próprio tenha sido convidado a ensaiar atores da Royal Shakespeare Company. "Em geral as pessoas dizem ?isso é muito bom, mas é educação, política, terapia?. Por isso o fato de a mais famosa e tradicional companhia teatral da Inglaterra ter me convidado para trabalhar com atores shakespearianos teve um significado simbólico. Aquilo foi bonito", disse em entrevista ao Estado, em 1997. Augusto Pinto Boal nasceu no subúrbio carioca da Penha, em janeiro de 1931, filho de um padeiro português que fazia questão absoluta de que o filho fosse doutor. Para não contrariar o pai, viajou para os Estados Unidos no início da década de 50 para estudar Engenharia Química na Universidade Columbia, mas ali decidiu fazer também o curso de dramaturgia. "Eu estudava plásticos e drama moderno, petróleo e Shakespeare", comentava em tom irônico. No Actor?s Studio observou pela primeira vez como se trabalhava com o método Stanislavski, recém-chegado da Europa, que mais tarde ele introduziria no Arena. Mas de outra forma. "O excesso de interiorização era o problema do Actor?s. Para responder a uma pergunta simples - ?Como vai?? - o ator olhava para o horizonte, virava para lá e para cá o copo que tinha na mão, andava no sentido oposto, então virava sobre si mesmo, e respondia." De volta ao Brasil, em 1955, recusou um emprego na Petrobrás, mas aceitou o convite para dirigir o Arena, em São Paulo. Ali dirigiu peças como Ratos e Homens, de Steinbeck, no elenco da qual estreou o ator Milton Gonçalves, e inaugurou sua amizade com Gianfrancesco Guarnieri. Criou o sistema curinga - o revezamento de atores num mesmo papel - e dirigiu musicais que marcariam época, como Arena Conta Zumbi e Arena Conta Tiradentes, ambos criados em parceria com Guarnieri, e Revolução na América do Sul. "Arena Conta Zumbi foi uma madura declaração de identidade, grito de rebeldia contra o autoritarismo que assolava o País naquela época", diria por ocasião da morte do amigo Guarnieri. O Arena viajou pelo Brasil, apresentou espetáculos para plateias pouco acostumadas ao teatro, como os trabalhadores das Ligas Camponesas criadas por Francisco Julião. A partir de 1968, com a decretação do AI-5, a repressão se intensificou, desarticulando aquele intenso movimento teatral. Em 1971, Boal foi preso e torturado, o que lhe deixaria sequelas físicas para toda a vida, entre elas a fragilidade no joelhos. Liberto, exilou-se na Argentina e ali começou a desenvolver o chamado Teatro Invisível, uma das formas de Teatro do Oprimido, na qual dois atores fazem uma cena em local público, provocando a reação dos transeuntes que, só depois, tomam conhecimento de que se trata de teatro, passando então a questionar os atores. Da Argentina foi para o Peru e lá começou a desenvolver o Teatro Fórum, no qual a plateia sabe que está diante de uma representação, que será interrompida num dado momento, quando os atores pedem sugestões ao espectador para construir o desfecho da cena. Na Europa, Boal desenvolveu o Arco-Íris do Desejo, outro desdobramento do Teatro do Oprimido, que atua sobre sentimentos mais profundos, "porque me deparei com novos problemas, além das questões sociais, como a solidão", explicava. Foi justamente essa técnica que colocou a serviço dos atores na criação de Hamlet, na Royal Shakespeare Company. É fácil avaliar a ressonância do Teatro do Oprimido em várias partes do mundo - basta uma pesquisa no Google. Na França, onde passou a maior parte de seu exílio europeu, Boal criou o Centro do Teatro do Oprimido, até hoje subsidiado pelo governo local. Na volta ao Brasil, em 1986, dirigiu O Corsário do Rei, texto de sua autoria com músicas de Edu Lobo e Chico Buarque, e a tragédia Phedra, com Fernanda Montenegro como protagonista. Curiosidade: Boal era o "caro amigo", destinatário da carta na canção de Chico Buarque, cujos versos "um beijo para família, para Cecília" fazem referência à sua mulher, a psicanalista com quem teve o filho Julián. Nos anos 90, Boal elegeu-se vereador no Rio pelo Partido dos Trabalhadores (PT) e criou a mais recente forma de Teatro do Oprimido, o Teatro Legislativo. Quando seu mandato chegou ao fim havia 19 grupos atuando - de negros, cegos e empregadas domésticas, entre outras formatações. Os grupos representavam conflitos inerentes à categoria, ou a seus bairros, e daí sugeriam leis. Augusto Boal também deixa uma vasta obra escrita, livros frequentemente reeditados como Teatro do Oprimido e Jogos para o Atores e Não-Atores (ambos pela Civilização Brasileira) e a autobiografia Hamlet e o Filho do Padeiro (Editora Record).

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