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''Me dão dinheiro para fazer ciência e eu faço, mas não vai para frente''

Pesquisadora do Butantã conta como é difícil transformar conhecimento acadêmico em tecnologias de mercado

Por Herton Escobar
Atualização:

Pesquisadora do Instituto Butantã há mais de 20 anos, a bioquímica Ana Marisa Chudzinski-Tavassi mantém dois dos mais importantes trabalhos científicos de sua carreira guardados numa gaveta virtual de seu computador. Um deles relata a ação de uma proteína com atividades antitumorais e anticoagulantes, isolada da saliva de carrapatos. O outro descreve uma molécula de veneno de taturana que promove imunidade celular e estimula a produção de colágeno. Os resultados estão prontos e redigidos há mais de um mês, mas até agora não foram enviados para nenhuma revista especializada. "Estou me esforçando para não publicar", revelou Ana ao Estado, em uma visita ao Laboratório de Bioquímica que ela coordena no Butantã. Para quem conhece os costumes da pesquisa acadêmica brasileira, em que a publicação de trabalhos em revistas de alto nível simboliza a consagração máxima da carreira científica, a frase de Ana soa como uma aberração. Mas uma aberração bem justificada: antes de publicar seus dados, ela quer ter certeza de que o conhecimento científico produzido em seu laboratório poderá se converter em resultados práticos para a sociedade. Quem sabe uma droga anticâncer ou mesmo um cosmético antirrugas. É aí que começa o problema - não só o de Ana, mas de muitos outros cientistas que ousam se aventurar pelo labirinto de leis, dúvidas e preconceitos que ainda separam a produção de conhecimento da inovação tecnológica no Brasil. Muitos já entraram, mas poucos acharam uma saída. "Faz sete anos que estou dando murro em ponta de faca", conta Ana, que tem ao todo cinco patentes. "Me dão dinheiro para fazer ciência e eu faço. Os resultados aparecem, mas a coisa simplesmente não vai para frente." Ana sonha com o dia em que a ciência produzida em seu laboratório chegará às prateleiras das farmácias. Só que, para isso, antes de tornar seus resultados públicos, é preciso patenteá-los. E depois de patenteá-los, é preciso licenciar o seu desenvolvimento a alguma empresa farmacêutica - de preferência, nacional. "Se eu publico isso agora, no dia seguinte os laboratórios estrangeiros vão correr atrás. Não dou 15 dias para começarem a fazer testes." LIÇÃO HISTÓRICA A história mostra que Ana tem razões para se preocupar. O que ela teme acontecer agora é exatamente o que aconteceu 60 anos atrás com o captopril, uma droga anti-hipertensiva de grande sucesso cujo princípio ativo foi isolado do veneno da jararaca por pesquisadores brasileiros. O trabalho pioneiro foi publicado em 1949 no American Journal of Physiology. Nele, os pesquisadores Maurício Rocha e Silva, Wilson Beraldo e Gastão Rosenfeld relatavam a descoberta da bradicinina, uma molécula natural com efeito vasodilatador que é superativada por outras moléculas presentes no veneno da jararaca. Mais tarde, na década de 60, o médico Sergio Henrique Ferreira (aluno de Rocha e Silva na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo em Ribeirão Preto) isolou uma dessas moléculas do veneno, batizada com a sigla BPF (bradikinin potentiating factor). Como não havia indústria farmacêutica no Brasil, os trabalhos foram publicados, viraram conhecimento público e chamaram a atenção do laboratório americano Squibb, que usou a estrutura molecular do BPF como base para o desenvolvimento do captopril. Lançada nos Estados Unidos no início da década de 80, a droga virou referência mundial para o tratamento da hipertensão. Hoje, uma versão genérica da droga é usada pelo Sistema Único de Saúde (SUS) no Brasil. Ana torce para que a história não se repita. "Se um laboratório estrangeiro usar o meu trabalho para salvar vidas, ficarei feliz. Mas seria frustrante pensar que isso poderia ter sido feito aqui no Brasil", diz. FUTURO INCERTO A indústria farmacêutica nacional garante que tem interesse nas pesquisas de Ana e de outros cientistas que trabalham com moléculas da biodiversidade. Mas uma série de incertezas jurídicas desestimula os investimentos necessários para fazer o desenvolvimento das patentes. O risco é alto demais. As patentes que protegem a pesquisa de Ana estão depositadas no nome dela, da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) - que financiou a pesquisa - e do Coinfar, um consórcio de três empresas brasileiras do setor farmacêutico (Aché, Biolab e União Química) - que também financiou a pesquisa. Por causa disso, antes de divulgar qualquer resultado novo, Ana precisa submetê-lo à indústria para avaliação, de modo que os dados possam ser patenteados antes de serem publicados - procedimento padrão nesse tipo de parceria público-privada. Foi o que ela fez. Só que a resposta demorou a vir, atrasada pelas incertezas jurídicas, e Ana deu um ultimato às empresas: ou desenvolvem as moléculas ou liberam a publicação dos dados. "Se não for para virar remédio, melhor que vire conhecimento público", afirma Ana. O ultimato veio com dois prazos. O primeiro, sobre a molécula do carrapato, venceu há duas semanas. O laboratório liberou a publicação. "Vou mandar o trabalho para uma revista nos próximos dias", promete Ana. O segundo, referente à molécula da taturana, aguarda uma definição da empresa. Apesar dos resultados promissores obtidos em modelos animais, muitos anos de pesquisa e muitos milhões de dólares ainda são necessários para saber se alguma dessas moléculas poderá trilhar um caminho semelhante ao do captopril. A grande maioria não chega a lugar nenhum. Ana tem consciência disso. "Pode até não virar um medicamento no final, mas temos de pelo menos tentar. O pior que pode acontecer é esse conhecimento morrer aqui na minha gaveta", desabafa.

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