Mais de 30 mil abusos na Irlanda

Relatório revela casos ''endêmicos'' de estupro e espancamento em escolas e reformatórios da Igreja Católica

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Por AP e EFE
Atualização:

Relatório divulgado ontem na Irlanda acusa padres e freiras de instituições para cuidar de crianças administradas pela Igreja Católica de abusarem sexualmente e maltratarem milhares de meninos e meninas em escolas, reformatórios e orfanatos durante seis décadas. Além disso, os inspetores do governo não teriam sido capazes de pôr fim ao quadro crônico de espancamentos, estupros e humilhações. O documento, de 2.600 páginas, assume quase totalmente o partido dos ex-estudantes, que relatam abusos sofridos em mais de 250 instituições administradas pela Igreja. Conclui que funcionários do clero sempre protegeram da prisão os pedófilos membros da sua ordem para preservar a própria reputação e, de acordo com papéis encontrados no Vaticano, era sabido que muitos deles eram reincidentes seriais. Entre 30 mil e 35 mil crianças teriam sido vítimas desses abusos. Responsáveis por pequenos furtos, identificadas como moradoras de rua ou provenientes de famílias desestruturadas, as crianças eram enviadas para a rede de escolas, reformatórios, orfanatos e albergues desde 1914 até o fechamento das últimas instalações, na década de 1990. Segundo a Comissão de Inquérito para os Casos de Abuso Infantil da Irlanda, instituída pelo governo para apurar as denúncias, depoimentos consistentes de homens e mulheres ainda traumatizados, hoje com idades entre 50 e 80 anos, demonstram que o sistema tratava as crianças como prisioneiros e escravos, e não como cidadãos detentores de direitos e potencial humano. "Uma atmosfera de medo, criada pelos castigos arbitrários, excessivos e invasivos, permeava a maioria das instituições. Crianças conviveram com o terror diário de não saber quando seria a próxima surra", conclui o texto. Em comunicado divulgado ontem, o arcebispo da Igreja Católica irlandesa, cardeal Sean Brady, pediu desculpas e disse estar "envergonhado" com os fatos relatados. "O relatório ilumina um período obscuro do passado. A publicação desse extenso documento e análise é um passo bem-vindo e importante para estabelecer a verdade, para dar justiça às vítimas e para assegurar que um abuso como esse não volte a acontecer." CASOS ''ENDÊMICOS'' O documento, divulgado pelo juiz do tribunal superior Sean Ryan, diz que casos de abusos e violações eram "endêmicos" em instalações masculinas, administradas principalmente pela ordem da Irmandade Cristã. As meninas supervisionadas por ordens de freiras, principalmente as Irmãs de Caridade, eram, segundo o documento, submetidas a abusos sexuais com frequência menor, mas eram comuns as humilhações cujo objetivo seria acabar com a autoestima. "Em algumas escolas, um alto nível de espancamento ritual era considerado rotineiro. Meninas eram espancadas com objetos projetados para maximizar a dor e atingidas em todo o corpo." Há anos as vítimas pediam que a denúncia fosse tornada pública. Mas líderes das ordens religiosas rejeitaram as alegações, chamando-as de exageros e mentiras, e afirmaram que quaisquer abusos seriam responsabilidade de indivíduos há muito falecidos. O relatório propôs 21 maneiras de o governo reconhecer os equívocos do passado, entre elas a construção de um memorial permanente, a oferta de acompanhamento psicológico e educacional às vítimas e a melhoria dos serviços de proteção à criança no país. Mas as descobertas não serão usadas em processos criminais - em parte porque a Irmandade Cristã processou com sucesso a comissão em 2004, obrigando-a a manter em segredo a identidade dos membros. O governo irlandês financiou um sistema paralelo de compensação que pagou a cerca de 12 mil vítimas uma soma média de US$ 90 mil. Cerca de 2 mil pedidos de indenização ainda esperam aprovação. As vítimas recebem apenas se abrirem mão do direito de processar o Estado e a Igreja. Centenas rejeitaram a condição. A comissão descartou como implausível um dos argumentos da defesa das ordens religiosas - em épocas anteriores, as pessoas não identificavam o abuso sexual de criança como crime, mas pecado que exigia arrependimento. Nos seus depoimentos, os religiosos citam esse motivo como a principal razão de pedófilos terem sido abrigados pelo sistema e transferidos para postos onde pudessem manter contato com crianças. Mas a comissão diz que a investigação dos fatos demonstrou que funcionários compreenderam exatamente o que estava em jogo: sua reputação. A comissão condenou a Secretaria da Educação irlandesa, pois seus inspetores deveriam restringir os castigos corporais e garantir que as crianças fossem bem alimentadas, vestidas e educadas. O relatório diz que as inspeções eram "fundamentalmente falhas". REVELAÇÕES Trecho do relatório "Uma atmosfera de medo, criada pelos castigos arbitrários, excessivos e invasivos, permeava a maioria das instituições, em especial aquelas que abrigavam meninos. Crianças conviveram com o terror diário de não saber quando seria a próxima surra" Sean Brady Arcebispo irlandês "O relatório ilumina um período obscuro do passado. A publicação desse extenso documento e análise é um passo bem-vindo e importante para estabelecer a verdade, para dar justiça às vítimas e para assegurar que um abuso como esse não volte a acontecer"

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