Mais carne, menos osso

Na contramão da ditadura da magreza, a modelo Fluvia Lacerda faz sucesso nos Estados Unidos com suas curvas

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Por Vera Fiori
Atualização:

Beth Ditto, 95 quilos, a escrachada vocalista da banda The Gossip, já se apresentou no palco seminua, deixando à mostra pneuzinhos e celulites. Mais do que simplesmente chocar as pessoas, a roqueira é uma espécie de libertadora da tribo GG. Beth virou ícone do "gordinhas orgulhosas", o Fat Proud, movimento que não faz muito sucesso por aqui, onde a maioria das mulheres se sente infeliz com as curvas que Deus lhes deu. Este, definitivamente, não é o caso da modelo brasileira Fluvia Lacerda, 28 anos, casada, uma filha. Há dez anos, quando viajou rumo aos Estados Unidos para estudar inglês e trabalhar como babá, sequer passava por sua cabeça ser modelo. Foi descoberta por uma editora de moda dentro de um ônibus a caminho de Manhattan. Na hora da abordagem, pensou que se tratava de uma pegadinha de mau gosto. "Como poderia ser considerada material ideal para o mundo da moda, se a concepção que temos é de que todas as meninas precisam ser magérrimas, apenas de pele e osso?" Lá se vão três anos de uma bem-sucedida parceria com a Elite: Segundo a modelo Fluvia Lacerda, a opinião de terceiros não influi no seu modo de ser e de pensar "Sou chamada para participar, principalmente, de campanhas publicitárias. Curti muito ter sido capa de um calendário americano, o primeiro feito apenas com modelos plus size, e isso ganhou uma repercussão enorme nos EUA. Nas próximas semanas, vou participar de uma campanha na Espanha. Estou super animada para fotografar lá, pois foi um dos primeiros países a decretar uma lei quanto ao peso/massa física mínima das modelos. Será uma oportunidade maravilhosa de mostrar o outro lado da moeda." Sem revelar o peso, a bela morena tem 1,72 metro de altura e veste manequim 48. Perguntada se na adolescência experimentou algum tipo de regime maluco, conta que nunca fez uma dieta na vida e que sempre curtiu o seu tipo físico. Bem resolvida, fala que não vê razões para passar fome. Por sinal, observa que existe a ideia de que quem está acima do peso tem uma saúde ruim ou come de forma errada, o que, segundo a modelo, são estereótipos da sociedade: "Ser gordinho não significa sair comendo tudo o que vê pela frente. A genética favorece que eu seja mais cheinha, e não luto contra isso. Não sigo dieta, mas também não vivo comendo besteiras, tampouco tenho uma vida sedentária. No entanto, se quero comer um chocolate ou um prato com arroz e feijão, por exemplo, não me nego esse prazer de forma alguma. Malho muito, porque gosto da sensação, da energia, da disposição. A diferença é que não vou à academia pensando nos quilos que vou perder ou nas calorias que estou queimando. Malho para manter coração e corpo saudáveis, e esvaziar a mente. Quando termino os exercícios, me sinto mil por cento e de bem comigo mesma!" A modelo frequenta a academia cinco vezes na semana. O ritual de fitness inclui andar de bike (seu meio de transporte diário), sessões de spinning (45 minutos) para fortalecer os músculos, aulas de ginástica localizada e ioga. Quando não está viajando a trabalho, pratica flamenco, uma das suas grandes paixões.  Padrão real Segundo a pesquisa Real Beleza, de Dove, 90% das brasileiras manifestaram o desejo de mudar algo no corpo e 55% disseram que é difícil se sentir bonita quando confrontada com os atuais padrões estéticos - por exemplo, ter quadril de, no máximo, 90 centímetros, como regem as passarelas. "Jamais terei quadris com essas medidas e certamente a minha felicidade não depende disso", rebate a modelo, que, admite, já nasceu com autoconfiança nata: "Sou objetiva e lógica quanto a esse aspecto da minha vida. Críticas sempre vão existir. Se você é muito alta, gostariam que fosse mais baixa, se tem cabelo vermelho, deveria ser loiro, se é cacheado, a moda dita o liso, e assim vai. A cheinha vive afogada em paranoias e sonhando com uma pílula mágica para ficar magra. Nessa loucura em se transformar ou se adequar a esse molde que a sociedade empurra goela abaixo, as pessoas se esquecem de viver, de se conhecer melhor para, quem sabe, gostarem de si mesmas e de suas imperfeições. Vivemos preocupados com o que o mundo pensa a nosso respeito." Na sua opinião, aqueles que perdem tempo procurando ser alguém que os outros aceitem acabam se esquecendo de buscar a própria felicidade: "Fiz a escolha de não me encaixar nessa prisão mental. Tenho meus dias ruins, dia de espinha no meio da testa, dia de cabelo que não obedece, dia de mau humor, como todo mundo. Mas mantenho em mente que sou linda. Me cuido, sou vaidosa, adoro me vestir bem, amo meus quadris largos, minhas pernas fortes e meu cabelo de leoa. Foi assim que Deus me fez. Portanto, não vejo razão para me torturar em busca de ser algo determinado por outras pessoas. Você tem que ser a sua prioridade número um." No mundo, e o Brasil não foge à regra, as mulheres fazem de tudo para "secar". Mas será que os homens não preferem as curvilíneas aos feixes de bambus das passarelas? "Acredito que existe gosto para tudo. A maior parte dos americanos que conheci prefere as mulheres curvilíneas, não excessivamente acima do peso, mas também nem só de pele e osso. Apesar da nossa cobrança com a balança e com o espelho, a verdade é que a maioria dos homens não entende o porquê dessa busca pela aparência perfeita, tampouco o porquê das modelos nas passarelas serem cada vez mais magras." Para a modelo, se por um lado o sexo oposto é relax em relação a alguns quilinhos a mais, a indústria de alimentos dietéticos e a mídia pressionam quem não se encaixa nos "padrões ideais" de beleza. O poder da reviravolta, diz ela, está nas mãos das próprias consumidoras do mercado plus size: "A indústria dietética fatura bilhões bombardeando as pessoas com falsas ideias de que pílulas ou dietas milagrosas vão fazer com que fiquem magras da noite para o dia. A mídia também tem grande responsabilidade diante desse quadro, uma vez que impõe padrões estéticos impossíveis de se atingir. O lado bom é que alguns países já acordaram para uma nova realidade, quer dizer, não dá só para vender um protótipo magro quando os seus consumidores não podem comprá-lo. Por conta disso, aqui nos Estados Unidos e em vários países da Europa, o mercado plus size vem ganhando espaço, principalmente no que se refere à moda. Revistas de referência, como a Vogue USA, já usam modelos plus size para ilustrar suas páginas, o que é um avanço fantástico. No Brasil, acredito que isso só acontecerá quando as próprias consumidoras começarem a exigir isso do mercado e da mídia." Que moda? Houve um movimento nas edições passadas do São Paulo Fashion Week alertando sobre a importância de uma alimentação equilibrada. Mas, de forma contraditória, nenhum estilista coloca modelos acima do manequim 38 na passarela e, muito menos, aumenta a grade de numeração. Na opinião de Fluvia, essa contradição reflete a falta de visão da indústria da moda para abraçar novos mercados e desafios. "Trata-se de uma lógica de mercado, isto é, se a demanda existe, então há também a necessidade de supri-la." Falando em moda, após anos sem aproveitar o verão brasileiro, a modelo decidiu, no ano passado, voltar ao País e desfrutar de alguns dias de sol. Mas a experiência não foi muito agradável. "A ditadura do biquíni por aqui é bem mais cruel do que em qualquer parte do planeta, principalmente porque, quando o assunto é comprá-los, as gordinhas estão fora de questão, não há opções." Comparando os mercados, ressalta que, nos Estados Unidos, por exemplo, estima-se que 68% da população feminina vistam manequins que variam de 42 a 52. Nesse caso, os fabricantes foram forçados a produzir roupas GG com os mesmos estilos, criatividade e qualidade para todos os tamanhos. Já no Brasil, segundo Fluvia, as roupas para as gordinhas normalmente são mal feitas, bregas ou carregam a aparência de terem pertencido às avós. "Designers como Jean-Paul Gautier, Diane Von Fustenberg, John Galliano, entre outros, passaram a fazer roupas com numeração até 44 e 46. São profissionais de visão", conclui.

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