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Mãe dos cegos

Dorina Nowill não se intimidou com sua cegueira e criou uma fundação que é referência no Brasil

Por Ciça Vallerio
Atualização:

Neste mês, começa a contagem regressiva para a celebração mundial do bicentenário de nascimento de Louis Braille, o criador do sistema de escrita e leitura em relevo, que possibilitou às pessoas cegas o acesso ao conhecimento. No Brasil, uma das representantes de destaque da comissão nacional é Dorina Nowill - eleita no ano passado, pela revista Forbes, uma das cinco mulheres mais influentes do País, e que terá este ano uma série de atividades em sua homenagem. E olha que ela vai fazer 89 anos em maio! Não é à toa que Dorina é uma referência quando se fala em deficiência visual. Tudo começou quando, aos 17 anos, ficou cega por causa de uma patologia ocular. O problema não limitou sua vida, mas a impulsionou ainda mais. Mesmo não enxergando mais, continuou com seus estudos. Foi a primeira aluna cega a se matricular em uma escola comum, em São Paulo, e estudar com colegas de visão normal. Era a Escola Caetano de Campos, de onde saiu formada em Magistério. Quer dizer, nem saiu de lá. Na seqüência, engatou, junto com outros formandos, o projeto de implantação do primeiro curso de especialização de professores para ensino de cegos. E conseguiu. Na época, meados dos anos 40, havia pouquíssimos livros em braile no País, menos ainda em português. Descontente com essa realidade, criou, em 1946, a Fundação para o Livro do Cego no Brasil, reunindo alguns voluntários. Anos depois, a organização passou a ser chamada - merecidamente - Fundação Dorina Nowill para Cegos, como é conhecida até hoje. Durante a entrevista concedida ao Feminino, em sua sala, regada a café e biscoitinhos de polvilho, Dorina lembra como eram rudimentares os métodos para marcar cada letra pontilhada. "Sem máquinas, transcrevíamos livros para o braile à mão. Uma loucura! Por isso que batalhei tanto para instalar uma imprensa braile em São Paulo." Como, para ela, obstáculos parecem não existir, a Fundação conta com uma bem montada imprensa braile, cujo maquinário foi sendo atualizado ao longo de seus 56 anos de existência. Hoje é a maior do Brasil. Já foram produzidos mais de mil títulos, totalizando 100 mil volumes, entre livros didáticos, de literatura, partituras musicais, best-sellers e outros materiais de prestação de serviço, que são distribuídos gratuitamente para deficientes visuais e outras organizações. Batalha Até tornar-se especialista em braile e tudo o que se relaciona à deficiência visual, Dorina suou a camisa - e muito. Obstinada, e recém-formada, conseguiu uma bolsa de estudos nos Estados Unidos, no curso de especialização para deficientes visuais da Universidade de Columbia. Foi quando estagiou nas principais organizações de serviços para cegos. "Era constantemente chamada para falar do Brasil diante dos alunos que chegavam de outros países", lembra Dorina, que, atualmente, ocupa o cargo de presidente emérita e vitalícia da Fundação. "Para rebater alguns colegas americanos que sempre colocavam os Estados Unidos como os melhores em tudo, fiz uma lista com tudo o que nós brasileiros tínhamos de maior. Numa dessas apresentações, mostrei que Billy the Kid (considerado o fora-da-lei que mais cometera assassinatos na época) não se comparava a Lampião e Maria Bonita." Retornando ao Brasil, seus projetos ganharam mais força. As atividades da Fundação foram ampliadas, passo a passo. Além da imprensa braile, surgiram programas gratuitos de atendimento especializado ao deficiente visual, que oferecem ainda hoje avaliação e diagnóstico ocular, educação especial, reabilitação, orientação e até colocação profissional no mercado de trabalho. Especialistas em mobilidade ensinam cegos a se locomover pela cidade, garantindo maior independência. O professor de música com baixa visão, Zoilo Lara de Toledo, por exemplo, transcreve partituras para sinais em braile, para que cegos possam aprender a tocar. Mas existem muitos outros serviços. Só em 2006, foram atendidas mais de 17 mil pessoas. Acompanhando as transformações dos tempos, criou-se a Biblioteca Circulante do Livro Falado e Digital. Voluntários já gravaram mais de 500 títulos, entre livros e revistas, nos formatos K7, CD, MP3 e digital. Todo material é de uso gratuito. Há quem diga que não existe um cego alfabetizado no Brasil que não tenha, ao menos, aprendido com um livro da Fundação. Para alcançar esse patamar, na vida e na profissão, Dorina explica que sempre se inspirou em uma frase, a qual costuma repetir sempre: se você quiser realizar algo, tem de fazê-lo onde você está e com o que tem no momento. "Desde o começo, eu e aqueles que também se envolveram nesse projeto usamos tudo o que havia no momento", conta. "Se tivesse sido obrigada a ir a Brasília para pedir um dinheirinho e comprar um terreninho e blábláblá, não teríamos conseguido nada." Vida pessoal Além de se dedicar de corpo e alma aos projetos, Dorina deu conta também da família - que não era nada pequena. Casada há 57 anos com Edward Hubert Alexander Nowill, é mãe de cinco filhos, já adultos, e avó de 12 netos. Nem o corre-corre profissional a impediu de estar presente na educação da prole e em afazeres domésticos. Só para se ter uma idéia, ela sabe tudo o que tem na sua casa, desde o número de toalhas e louças até onde está cada objeto. Para isso, conta tudinho, seus vestidos, sapatos, bolsas e jóias - estes dois últimos itens são a sua perdição, o que revela seu lado assumidamente vaidoso. - Sempre gostei de me arrumar. Dizem que combino até as pulseiras. Aprendi na marra as combinações que posso fazer com o que tenho no guarda-roupa. Não ligo para grifes. Compro minha roupa em uma confecção cuja dona é estilista e se tornou amiga. Ela me orienta, mostra o que está na moda e o que fica bem em mim. Mas sempre dou a palavra final. Nunca compro uma peça só por escutar que ficou boa, que é bonita. Preciso de outras opções para eu mesma escolher. Sei que hoje está na moda o roxo. Uma vez mandei fazer um vestido azul turquesa e sabia que tinha um par de sapatos nesse tom para combinar, o qual tinha usado no casamento de um dos meus filhos há anos. Pedi para a minha empregada procurar e, dito e feito, lá estavam eles. Dorina se cerca de pessoas nas quais confia, quando o assunto é beleza. Vai à cabeleireira do bairro "quase sempre", como conta. Apesar de não saber a cor de seu cabelo, não descuida da tintura. Quando surgem novidades na butique da sua amiga, é avisada. Sua outra perdição, confessa, é a boa mesa. Gosta de comer bem. Ensina receitas à cozinheira, incluindo pratos internacionais. Assume-se como exigente, tanto na qualidade dos preparos como na higiene da cozinha. Agora, esta senhora de energia excepcional está mesmo é empolgada com as comemorações que vão ocorrer ao longo do ano. Por isso, demonstra mais entusiasmo em contar a vida de Louis Braille do que a sua própria. Uma vida que inspira tanto quanto a dela (saiba mais no texto ao lado). Razão pela qual ambos estão intrinsecamente ligados. Mais uma vez, Dorina vai se empenhar para que as homenagens realizadas no Brasil tenham o mesmo brilho das que vão acontecer no resto do mundo, especialmente na França, terra natal desse personagem que deu aos cegos infinitas possibilidades de aprendizado. E se alguém acredita que é "feio" usar a palavra cego para designar alguém que não pode enxergar está enganado. "Dizem que nós não gostamos de sermos chamados de cegos, besteira", avisa Dorina. "O que existe é a dificuldade de aceitar nossas limitações, não a palavra. Tem gente que usa ?deficiente visual?, achando que é mais politicamente correto. Na verdade, essa expressão é usada porque a cegueira tem vários graus, do leve ao total. No meu caso, sou cega mesmo!" (risos)

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