Invasão de territórios

Conceitos antigos, sobre o que deve ser feito por mulher ou por homem, estão caindo por terra

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Por Ciça Vallerio
Atualização:

"Acorda, acorda Cinderela! Isso aqui não é um conto de fada Se você tá achando que vai encontrar seu príncipe encantado Você tá completamente enganada É melhor você começar a se virar Que os papéis aqui se inverteram E daqui a pouco você vai tropeçar No seu mocinho descolorindo o cabelo Ai, neguinha, quero vê quem vai trocar seu pneu Pra você seguir viagem Porque a vida é uma só Vai desperdiçar com bobagem? As lâmpadas do meu caminho quem troco sou eu Posso até ser Julieta Mas não fico sentada à espera do meu Romeu." Assim, em ritmo de rap, a vocalista da banda Squat, Miá Melo, de 26 anos, canta as mudanças do cotidiano, em letra de sua autoria. Atividades que eram denominadas "coisa de homem" ou "coisa de mulher" sofreram uma reviravolta. Hoje eles assumem tarefas ditas femininas, sem colocar em xeque a masculinidade. Elas, que há anos vêm ganhando destaque no mercado de trabalho, também estão cada vez mais autônomas no dia-a-dia, dispensando a contribuição dos homens em quesitos antes dominados por eles. Miá é um exemplo de quebra de tabus. No mundo hip hop, existem poucas mulheres vocalistas como ela. Mas é na vida privada que a cantora assume papéis tipicamente masculinos. "Tenho ferramentas básicas para cuidar da manutenção da casa", conta a paulista, que também é atriz. "Em vez de pedir ajuda para um homem e ter de esperar a boa vontade dele, vou lá e resolvo. Conserto de campainha quebrada a aparelhos eletrônicos. Quando preciso pendurar meus quadros, peço uma furadeira emprestada e mando bala." Ela não pensa duas vezes na hora de invadir outros redutos masculinos. Já encarou rampas de skate e pegou onda. Ainda dirige e estaciona o carro melhor que o namorado, e fez sua mudança de apartamento sozinha. Como era feriado e os amigos estavam viajando, Miá arregaçou as mangas, encaixotou tudo e levou a tralha toda no seu carro em seis viagens. Em compensação, nas tarefas tradicionalmente femininas, é uma lástima. "Não cozinho nada, não sei varrer direito, porque a minha coordenação ?fina? é muito ruim. Apesar desse meu jeitão, me cuido, gosto de ficar bonita e arrumada, mas conheço homem muito mais vaidoso que eu." VAIDOSOS A vaidade já não é mais assunto só de mulher. Tempos atrás, homem que se cuidava além do básico poderia cair na boca do povo. Mas graças à modernidade, a mulherada não precisa mais fazer vista grossa para o desleixo deles, que se traduzia em pé rachado, cotovelo seco e cascudo, barriga protuberante e peluda, cravos gigantes no nariz, entre outras aberrações. "Costumo depilar o abdome para elas e para mim, por achar bacana e higiênico", afirma o administrador de empresas Adriano Gomes, de 28 anos. "Se gostamos que as mulheres estejam bem depiladas, por que não oferecermos a elas uma pele lisinha e bem cuidada também? Hoje estou muito mais vaidoso, meus interesses pelos assuntos femininos ultrapassam preconceitos! Qual mulher não gosta de um homem com pele macia, depilada, cheirosa e com unhas que não arranhem? A boa aparência gera mais autoconfiança. O espelho deixou de ser domínio feminino." Adriano sabe, porém, que, por mais moderninhos que os homens tenham se tornado, a vaidade masculina não está totalmente liberada ou aceita. Ainda existe um ranço de preconceito. "Não me incomodo com comentários, quem fala muito tem problema com a própria sexualidade", provoca o administrador. Quem torce o nariz para aqueles que fogem do padrão pré-estipulado tem grande chance de se assustar com uma atitude tipicamente masculina adotada por Alessandra Oliveira, de 34 anos. Diante de um pretendente interessante, ela parte para o ataque, sem esperar sentada e cheia de dengos que o homem tome a iniciativa. A tática de Alessandra funciona da seguinte forma: ela passa a olhar acintosamente para o alvo, acompanha suas atitudes - se o objeto do desejo, por exemplo, vai ao banheiro, ela vai atrás e se posiciona em um lugar estratégico para facilitar o contato -, e puxa papo. "Eles ficam desconcertados, mas, ao mesmo tempo, curtem a ousadia, por não estarem acostumados com a iniciativa feminina", revela Alessandra, que é booker de atores e modelos. "É o tipo de paquera que rende apenas aventura e é exatamente o que quero: evitar compromissos. Depois de um longo namoro, estou com fobia de relacionamento sério." Enquanto Alessandra foge de namoro, o gerente comercial Renato Ribeiro, de 50 anos, curte a vida de casado, mas de uma maneira bem diferente. Chega mais cedo que a mulher, tira o paletó, coloca avental e vai para a cozinha cuidar do jantar. Como adora cozinhar, a ponto de ter uma coleção de livros e recortes de receitas, o menu dificilmente se repete. Depois, entrega a cozinha impecavelmente limpa e arrumada. "Como muita gente sabe que curto preparar pratos diferentes, ganho recortes de receitas das colegas de trabalho. Converso com elas freqüentemente sobre comidas e também adoro assistir aos programas de gastronomia na televisão", conta Renato. "São poucos os homens que me procuram para falar de culinária." Para a sorte da esposa, os dotes domésticos do marido vão além. Sexta e sábado são os dias reservados por ele para cuidar da roupa. Separa as peças, coloca algumas de molho, esfrega e as deixa preparadas para irem à máquina. Nos fins de semana, à tarde, passa toda a roupa, tarefa que divide com a mulher. Mas, por ser bem mais cuidadoso que ela, é o próprio gerente comercial que se encarrega de passar suas camisas e as peças mais delicadas da esposa. "Anos atrás, caçoavam de mim quando descobriam que eu ajudava minha esposa, mas hoje as pessoas não falam mais nada", avalia Renato. "Os homens estão mudando a cabeça e percebendo que não dá mais para agirem como antigamente, quando chegavam em casa, se sentavam à mesa e esperavam para serem servidos." ÀS AVESSAS Há várias maneiras de quebrar paradigmas sociais. Um grupo de amigos vive uma situação inusitada. Com compromissos profissionais até o pescoço, eles tentam se ver, ao menos, em encontros mensais, regados a muita comilança e drinques. Uma peculiaridade dessas reuniões gastronômicas: enquanto as mulheres ficam tomando seus uísques, os homens vão para a cozinha. "Elas são boazinhas: servem bebida para a gente enquanto ficamos no fogão", brinca o diretor de negócios Nilton Torres, de 44 anos. "Confesso que acabo assumindo mais as panelas, pois adoro cozinhar e acho ótimo essa inversão de papéis. Além disso, nenhuma delas entende de culinária, nem se candidatou para assumir o meu posto na cozinha." Amiga de Nilton, a psicanalista Rachel Scaramuzzi, de 48 anos, não esconde a total falta de intimidade com essa parte da casa. No entanto, o filho André, de 15 anos, aprendeu com o pai a se virar entre as panelas. O garoto tem até especialidade: nos churrascos, é o responsável pelo preparo de molhos especiais para carnes e saladas. Para provocar a mãe, costuma dizer que é magro porque ela não faz comida. E tem gente que acredita! "O engraçado é que as mulheres desta turma, todas na mesma faixa etária, estão separadas, bancam tudo sozinhas, investem na profissão, têm independência financeira, batalham muito para conquistar posições profissionais cada vez melhores... Mas, para isso, perdemos algumas das habilidades femininas", observa Rachel, que é divorciada. "Nenhuma de nós sabe cozinhar. Mas seria legal que todo mundo pudesse fazer de tudo, independentemente do sexo." Tudo indica que os limites de outrora vão desaparecer. As mulheres não deixam mais de realizar algo só porque é "coisa de homem". A arquiteta Fabiana Sá, de 28 anos, decidiu aprender a pilotar helicóptero. Inscreveu-se na aula e, por enquanto, estuda a parte teórica, que envolve muito cálculo matemático. Na classe, ela é a única mulher entre os marmanjos. E a adoração por domar motores no ar também se estende à terra. Desde criança, Fabiana foi apaixonada por carros - possantes, de preferência. Chegou a fazer cursos no Autódromo de Interlagos de direção defensiva. "Sempre achei incrível pilotar qualquer coisa, tenho prazer de comandar a máquina", justifica. "Quando viajo, brigo com meu namorado para dirigir o Porsche dele. Mas ele é machista, não deixa. Por isso, não vejo a hora de tirar o brevê de helicóptero."

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