PUBLICIDADE

Indesejados

Por Mary Del Priore
Atualização:

Monstro é a mãe que mata o filho. E isto desde a noite dos tempos. Dizem que nas penitenciárias femininas tais mulheres não podem ficar entre as demais detentas. São maltratadas, quando não, mortas. Tal crime é intolerável mesmo entre as mais bárbaras! O infanticídio é imperdoável. Como pode quem dá a luz, trazer o sono eterno? O fato é que o gesto de tirar a vida de uma criança é velho como a História. No século XVIII não foram poucos os manuais de confessores - livrinhos que o padre usava para se orientar na confissão dos fiéis - que recomendavam às mulheres não "afogar suas crias" na cama. O recado era simples. Não durmam com seus filhos para rolar sobre eles à noite, fingindo um acidente. Outra sugestão: não deixe a criança pequena perto do fogo ou do fogão, para que se queime. Não a deixe próxima de poços. A lista do padre, revela, contudo, o cotidiano de milhares de mulheres, de suas atribulações e das condições em que crianças indesejadas desapareciam. Ficou famoso em São Paulo de outrora o lixão que existia ao lado do convento de Santa Teresa, na atual praça da Sé. Não foram poucas as autoridades que, de passagem pela cidade, alojadas na instituição religiosa, descobriam, ao abrir a janela de manhã, restos de crianças entre restos de comida. A revolta era grande. Os sermões dominicais vinham carregados de ameaças. Mas o silêncio também era grande e as crianças continuaram como pasto para porcos e cachorros por muito tempo. Antigamente existia a "roda dos expostos". O enjeitado era colocado num funil de madeira, cravado no muro da Santa Casa de Misericórdia. A mãe tocava uma sineta e a mão da caridade recolhia a criança do outro lado. Houve aquelas que deixavam um bilhetinho. Uma nota explicando as condições do abandono: pobreza extrema, doença dos pais, adultério. Outras deixavam um enxoval, uma medalhinha, um nome escrito num pedaço de papel. Eram nomes complicados: Napoleão, Heródoto, Caio Graco. A intenção era poder recuperar, um dia, o filho de volta. Com um nome destes, ninguém se enganaria. Mãe e filho com nome esquisito se reencontrariam num abraço apertado. Tinha, também, os que eram abandonados nas portas de casas de família. Recolhidos "por amor de Deus", cresciam e se tornavam filhos de criação. Às vezes com o mesmo carinho dos filhos de sangue. Às vezes servindo de escravos disfarçados, pagando com serviços a vida que lhes foi poupada. No campo, eram rapidamente inseridos na família. Afinal, ganhava-se um braço para o trabalho na lavoura. Isto tudo para chegar no abandono e morte de mais crianças indefesas. Os jornais protestam. Os radialistas se perguntam que febre é esta que transforma a mãe em monstro. Alguns associam infanticídio e dificuldades para abortar. Mulheres ricas - explicam - abortam no sigilo e segurança de clínicas privadas. As pobres jogam seus filhos nos rios, lagos e outras profundezas. Discordo. No passado, o aborto era tão difícil para ricas quanto para pobres. Os riscos eram os mesmos: condenação social, doença e morte. E abortos já conviviam com infanticídios. Um não excluía o outro. A explicação é sempre a mesma: miséria, doença dos pais, vergonha, desamor. A diferença é que, nos tempos antigos, nossa sociedade acreditava em fazer o bem. A caridade era parte integrante dos valores das famílias, independentemente do seu credo, origem e cor. Tinha até a Misericórdia. Ajudar, ser útil, dar a mão, era o bê-á-bá. As crianças indesejadas acabavam por encontrar seu espaço em algum lar. Uma mãe adotiva, a do coração, em algum lugar. Hoje, ninguém tem mais tempo para isto. As regras da vida coletiva estão em migalhas e a constatação é só uma. A pobreza afetiva e material de muitos não mudou. E a caridade, que era pouca, se acabou! *Mary Del Priore é historiadora

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.