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Depois da visita do papa, fazenda para dependentes químicos fica pop

Em três meses, 2 mil jovens telefonaram para se tratar no local e 30 terrenos foram oferecidos para novas sedes

Por José Maria Mayrink
Atualização:

Até que se esperava alguma reação desse tipo à visita de duas horas que Bento XVI fez à Fazenda da Esperança, na manhã de 12 de maio. Mas ninguém podia prever que fosse uma resposta imediata e tão espetacular. Em menos de três meses, 2 mil jovens dependentes de drogas e de outros vícios telefonaram pedindo vagas na instituição. Só na primeira semana, foram 150 ligações, todas querendo uma chance de recomeçar a vida nesse lugar que o papa fez questão de conhecer quando veio a São Paulo e a Aparecida. ''''Coisa de Deus'''', escreveu frei Hans Stapel, o fundador da obra, no alto de um cartaz verde e branco com a reprodução do instantâneo no qual a fotógrafa Valéria Gonçalvez, da Agência Estado, registrou a emoção da visita - o papa alemão abraçando quatro crianças na despedida de Taquaral, em Guaratinguetá. Foi nessa cidade que, em 1983, começou a experiência hoje expandida numa rede de 44 unidades. ''''Coisa de Deus'''' são as 34 fazendas no Brasil e 10 em outros países (Argentina, Paraguai, Guatemala, México, Alemanha, Rússia, Moçambique e Filipinas). Por enquanto, pois o número está aumentando. Quinta-feira, frei Hans voou para a Colômbia, onde está fundando mais uma fazenda. Nos próximos meses, será a vez da Itália, que mandou padres da Sardenha para conhecer a experiência de Guaratinguetá. ''''Depois da visita do papa, recebemos 30 ofertas de doação de terras para a abertura de novas unidades'''', informa Klaus Rantenberg, um teólogo alemão que trabalha como voluntário. Rantenberg nunca foi usuário de drogas, mas há dez anos dedica a vida aos recuperandos (os ex-dependentes). Relações-públicas e assessor de imprensa da Fazenda da Esperança, ganhou uma bênção do compatriota Ratzinger para o filho que vai nascer, quando lhe apresentou a mulher, a psicóloga brasileira Jeniane, então grávida de dois meses. O papa conversou em alemão também com frei Hans. ''''Eu pedi ao papa que abraçasse os jovens que quisessem cumprimentá-lo e ele concordou, embora eu alertasse que a segurança poderia criar dificuldades'''', conta o frei. ''''Eles sempre exageram um pouco'''', respondeu Bento XVI, apontando os agentes de segurança do Vaticano e do Brasil. Dito isso, o papa saiu caminhando no meio da multidão, deixando-se tocar e abraçar, no ponto mais alto de sua viagem ao Brasil. A passagem pela fazenda foi toda articulada por frei Hans, que conseguiu convencer o Vaticano a encaixá-la no roteiro, e antecipada pelo Estado em janeiro. A lembrança do papa marca todos os cantos da Fazenda da Esperança, que montou no andar superior de um sobrado um museu com as coisas dele - uma cadeira-trono de madeira e a imagem da Madona que ele deixou de presente. ''''Tenho a alegria de todos os dias limpar a cadeira em que ele se sentou'''', diz Hélder Tecorasi, gerente da lanchonete, que funciona no térreo. Foram gastos R$ 5 milhões em obras para receber o papa, que, em troca, fez uma doação de US$ 100 mil à fazenda. A loja de produtos orgânicos da fazenda vende também calendários, livros, CDs, DVDs e medalhas douradas e prateadas com a efígie do papa. Na pequena igreja construída para a visita, onde Bento XVI rezou diante das relíquias de São Frei Galvão e de Santa Crescência, sua conterrânea da Baviera, as atrações são o sacrário e o altar em pedra maciça da região. ''''É a água viva do Evangelho'''', comentou o papa para um cardeal que se espantou ao ver um fio de água correndo sob a pedra do sacrário (onde é guardado o Santíssimo Sacramento). Segundo frei Hans, a água vem encanada de uma mina próxima, mas o cardeal pensou que fosse uma infiltração. De linhas simples e arrojadas, a igrejinha virou centro de peregrinação após a visita do papa. Hotéis e agências de turismo do Vale do Paraíba incluíram a Fazenda da Esperança no roteiro religioso que abrange também o Santuário Nacional de Aparecida e as instalações do movimento Canção Nova, em Cachoeira Paulista. ''''Temos de aprender a administrar essa realidade pós-papa'''', disse frei Hans na semana passada, incentivando os coordenadores da fazenda a enfrentar novos desafios. O primeiro deles é achar uma maneira de multiplicar espaço e recursos para atender às centenas de candidatos que telefonam à procura de vagas. Como ninguém paga nada, pois todos ali tiram o sustento do próprio trabalho, as despesas são pesadas. Os recuperandos produzem queijos e doces caseiros, colhem verduras, legumes e cereais, fazem artigos de artesanato e fabricam água sanitária em escala industrial. Tudo o que se cozinha ali - da carne e seus derivados às sobremesas - sai das mãos dos rapazes e moças que trabalham nos currais, nos galinheiros e na lavoura. Vacas leiteiras e búfalos de corte competem com as melhores raças da região. Pais, irmãos e primos que visitam os internos uma vez ao mês saem da Fazenda da Esperança - das três unidades de Guaratinguetá e de todas as outras - com uma cesta entulhada de coisas da roça. É uma retribuição à doação de um salário mínimo (R$ 380) que as famílias que têm condições fazem para custear o tratamento. Não é obrigatório, mas quem pode colabora. Os recuperandos - Guaratinguetá tem duas unidades masculinas e uma feminina - moram em casas capazes de abrigar de 15 a 20 pessoas. Sob a orientação de dois coordenadores ou padrinhos, os moradores dividem os serviços domésticos, revezando-se nas tarefas. O dia começa às 6h, com uma reflexão sobre trechos do Evangelho, e se encerra com um balanço do que se fez no trabalho e no relacionamento com os companheiros. ''''Num processo de um ano, os pilares de nossa metodologia são a convivência em família contra o isolamento da droga, o trabalho para a manutenção e a espiritualidade'''', informa Klaus, dando ênfase à convivência, que implica compreensão, perdão, doação e a capacidade de não julgar. Ex-dependentes de drogas e de álcool que eventualmente roubaram, mataram ou se prostituíram lá fora dividem o mesmo teto. Há também vítimas de bulimia e anorexia, cleptomaníacos e viciados em sexo. Não existem grades, só fica quem quer. O recuperando que completa um ano e eventualmente tem uma recaída, depois de se reintegrar na família e na sociedade, pode voltar quando e pelo período que achar necessário. Muitos acabam trabalhando como voluntários. É o caso, por exemplo, do maranhense Richardson Pereira, de 33 anos, ex-usuário de drogas, atualmente administrador no Taquaral. A adaptação do primeiro mês é dura. ''''O mais difícil é a convivência, porque no trabalho e na espiritualidade a gente se adapta'''', observou o estudante de Direito Felipe de Almeida Mata, mineiro de Ponte Nova, recém-chegado a Guaratinguetá. Ele e seus colegas cuidam do rebanho de búfalos ao pé da Serra da Mantiqueira.

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