De comemorações e esquecimentos

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Por Mary Del Priore
Atualização:

2008 está aí e o assunto será a comemoração dos cem anos da vinda da família real para o Brasil. Há de chover livros, artigos e entrevistas. E como toda a efeméride, esta vai colocar muito assunto em cena, para esconder outros. No Rio de Janeiro fala-se até em lançar a fragata que trouxe D. João VI ao mar. Mas paira um silêncio de morte sobre medidas contra a permanente sujeira, abandono e violência da cidade... Isto tudo para dizer que as lições da história existem. Por exemplo, aquelas sobre o descaso das autoridades são permanentes. Faço esta associação, pois os desdobramentos da "fuga dos Bragança" atingiram um dos temas mais recorrentes da imprensa: o da educação. E o da educação feminina, em particular. Explico-me: a vinda da Corte multiplicou o número de escolas de todo o tipo na capital. Desde pequenos pensionatos, para onde a aluna levava "cama & roupa", até grandes escolas chiques, onde se aprendia de mitologia grega à química. Os professores particulares eram legião: italianos ensinavam a dançar "com graça e garbo", os franceses, a tocar piano e manter a postura, os ingleses, a equitação. Começa, neste período, uma preocupação com a educação feminina. Os estrangeiros de passagem se chocavam com a ignorância da brasileira, com sua falta de interesse por livros, história ou conhecimentos gerais. Não havia assunto de conversa. Era, como de diz hoje, "da mão à boca". Umas rústicas. Pior: pareciam se comprazer nesta situação. Mas tinha uma desculpa. Eram as vítimas do machismo. O mal não era só brasileiro. A Revolução Francesa, que prometeu igualdade política para as mulheres, cortou a cabeça das impertinentes, que ousaram cobrar medidas para melhorar a situação de suas irmãs. Quando imperador, Napoleão foi entrevistado por uma lenda da época: Mme de Stäel, escritora fina e bonita. Que mulher gostaria de condecorar? E o soldado, na lata: "a que tivesse mais filhos!" Mas é aí que aparece uma brasileira notável. Nísia Floresta: educadora, jornalista e escritora. Nascida em 1810, jovem percebeu a necessidade de investir no ensino feminino. Seus escritos se multiplicaram em jornais e livros. O bordão: era preciso educar a mulher. Tirá-la da mistura explosiva do preconceito masculino, misturado às tradições paternalistas e à utilidade que existia em ter uma doméstica em tempo integral. Seu livro, Direitos da Mulher, Injustiças dos Homens, é uma declaração de guerra contra os que considerava "nossos inimigos". Muito cedo jornais femininos começaram a circular: o Espelho Diamantino, o Jornal de Variedades, o Espelho das Brasileiras. E entre uma receita de bolo e outra para ser feliz, o mesmo assunto: a educação da mulher. Parece incrível que no bojo destas comemorações ninguém se dê conta de como o assunto já estava em pauta há cem anos. E dos poucos avanços realizados. O número de adolescentes grávidas está fora de controle. O das jovens envolvidas com o tráfico de drogas só aumenta. E o descaso pela escola e seus mestres tem mais de cem anos! O que me espanta é que houve conquistas: quantas brasileiras educadas não ocupam, hoje, postos de comando? São políticas bem sucedidas! Mas o que têm feito pela educação de suas semelhantes? Pouco ou nada. O exemplo de Júlia Carepa ou Ângela Guadagnin é emblemático. Como no tempo de suas avós, continuam levando "da mão à boca"! E na falta do que fazer, festejam... *Mary Del Priore é historiadora, sócia honorária do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e autora de O Príncipe Maldito...(Objetiva, 2007)

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