Corrida contra o tempo

A antropóloga Mirian Goldenberg faz um alerta sobre a capitalização do corpo e a obsessão pelas formas

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Por Ciça Vallerio
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Quando tinha 40 anos, a antropóloga carioca Mirian Goldenberg se deparou com sua pior crise pessoal, desencadeada por uma consulta dermatológica. Pela primeira vez, ela fora ao especialista para saber que tipo de creme ou filtro solar seria ideal para sua idade. Ao examiná-la, em vez de indicar um produto, o médico sugeriu cirurgia plástica para melhorar o aspecto das pálpebras caídas e aplicação de botox na testa, para deixá-la "muito mais jovem". "Saí de lá me sentindo culpada e responsável por estar envelhecendo e por não ter recorrido a esses recursos de beleza antes", recorda Mirian. "Até então, via as marcas do tempo não como minha responsabilidade, mas sim como um processo natural. A partir dessa crise, que durou um ano, comecei a estudar a relação das brasileiras com o corpo e a pressão social à qual estão submetidas." Hoje, aos 50 anos, Mirian comemora sua melhor fase de vida, e não está nem aí para as ruguinhas. Seus estudos sobre o tema não pararam, virando um levantamento precioso sobre o culto ao corpo, que tanto impera no País. Lançou vários livros que tratam desse tema: Toda Mulher é Meio Leila Diniz, Novos Desejos, Nu & Vestido e De Perto Ninguém é Normal, todos pela Editora Record. Recentemente, colocou outro título no mercado, que também provoca reflexão: O Corpo como Capital (Editora das Letras e Cores). Além de suas novas constatações, Mirian publica estudos de outros autores sobre a questão. O título do livro, aliás, é o seu grande insight: o corpo - cada vez mais moldado, malhado e esculpido - tornou-se uma riqueza e um importante veículo de ascensão social. Ela ressalta que a associação entre físico e prestígio se tornou um elemento fundamental da cultura brasileira. "O início do século 21 será lembrado como o momento em que o culto ao corpo se tornou uma verdadeira obsessão, transformando-se em estilo de vida, principalmente entre as mulheres", diz a antropóloga e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro. "O paradoxo é que o corpo da brasileira se emancipou bastante de suas antigas servidões, as sexuais, procriadoras e de vestimenta. Mas, por outro lado, as mulheres passaram a ser submetidas a pressões estéticas muito mais autoritárias, que geram mais ansiedade do que antigamente. Ao mesmo tempo em que vivemos um dos momentos de maior independência e liberdade femininas, nos deparamos com esse alto grau de controle sobre o corpo." SEM TRÉGUA As mulheres convivem com a distância gigantesca entre o corpo real, ao qual estão presas, e o corpo ideal, que procuram incansavelmente alcançar. E haja disciplina e força de vontade para moldar as formas. A empresária Andrea Krettlis (foto de capa), por exemplo, de 38 anos, casada e mãe de uma filha de 11, tem uma alimentação hipercontrolada e uma rotina dura de malhação. Com músculos superdefinidos, um bumbum sem nenhuma celulite, os seios moldados por cirurgia plástica, ela chama a atenção por onde circula. Acostumada a puxar ferro com roupas de ginástica discretas, como o seu inseparável conjunto largo de moletom e camiseta, Andrea causou frisson na academia onde treina diariamente, Reebok Sports Club, ao desfilar de shortinho, para as sessões de fotos desta reportagem. "Sou assediada constantemente por mulheres que querem saber como fiz para ficar com esse corpo, mas a maioria diz que é muito sacrifício. No meu caso, apesar da rotina muito controlada, me sinto bem malhando e, claro, fico contente com o resultado final." O marido e a filha aprovam seu visual. Só torcem o nariz quando Andrea fica muito forte - resultado do treino de duas horas diárias. Proprietária de uma rede de oficinas, ela admite que suas formas facilitam algumas coisas na sua vida. Os homens são mais gentis, é sempre bem atendida, porém, existe também o outro lado da moeda: - Trabalhava em uma empresa e, quando tinha de apresentar algum projeto, os executivos só prestavam atenção ao meu corpo, apesar de me vestir de maneira bem discreta. Isso me deixava chateada, porque sou superprofissional e sentia que algumas pessoas não me levavam tão a sério. Muita gente acha que uma pessoa malhada não pode ser boa profissional, ter um bom cargo. Pensam que alguém assim não faz mais nada da vida, além de cuidar do corpo. Isso explica por que o fortão Christian Puthad, de 40 anos, desistiu na última hora de ser fotografado para esta reportagem. Por trabalhar no mercado financeiro, achou melhor não dar margem a mal-entendidos entre colegas e clientes. "Embora muita gente admire o físico malhado, existe um certo preconceito, pois o culto ao corpo pode ser visto como atividade fútil. Mas quem me conhece sabe que tipo de pessoa sou." DESEJO COLETIVO No entanto, segundo a antropóloga Mirian, no Brasil, o corpo é um importante capital nos mercados de trabalho, do casamento e sexual. Este fato ficou explícito na pesquisa realizada por ela, com 835 mulheres e 444 homens cariocas, de 17 a 50 anos e da classe média. Ao aplicar diversas perguntas, a única palavra que esteve presente em todas as respostas foi "o corpo" (confira na pág. seguinte). Depois de ter passado dois meses na Alemanha estudando a relação das alemãs com seus corpos, e recém-chegada da Espanha, onde participou de uma série de palestras, Miriam compara: "ao contrário das brasileiras, nem os homens nem as mulheres germânicos investem nessa sedução e sexualização por meio da aparência física. Já as espanholas são um meio termo entre brasileiras e alemãs." Segundo seus estudos, aos 50 anos, as alemãs se sentem poderosas pelo que conquistaram ao longo da vida, e encaram a chegada da idade como algo positivo, o auge feminino. Aqui, as brasileiras se sentem miseráveis, como se precisassem mendigar um homem, ou ao menos um elogio. Para a antropóloga, como se investe muito no físico, a brasileira fica mais insegura. A situação seria diferente se investisse na independência profissional e em outras realizações pessoais. Apesar de a Espanha ser o país da Europa onde se faz mais cirurgia plástica, suas mulheres estão bem distantes das brasileiras na busca pela magreza e juventude. As espanholas valorizam muito a família e os filhos, embora não tenham a mesma autonomia das alemãs. ESPELHO Fora aquele clichê que associa o calor tropical à maior exposição dos corpos, para explicar a obsessão dos brasileiros pelas formas perfeitas, Mirian encontrou outra resposta mais plausível para este fato. As pessoas imitam, conforme explica, aqueles que têm êxito e prestígio em sua cultura. E, no caso do Brasil, as mulheres "imitáveis", seguindo esses critérios, são as modelos, atrizes, cantoras e apresentadoras de TV, aquelas que têm o corpo como uma de suas principais riquezas. Dentro desse contexto, Michelle Bachelet - primeira presidente mulher do Chile e uma das poucas do mundo a ocupar esse cargo - e a poderosa Condoleezza Rice - secretária de Estado dos Estados Unidos - não são tidas como exemplos a serem seguidos. Hoje, o símbolo de destaque é a top model Gisele Bündchen, uma das modelos mais bem pagas do planeta. Antes dela, outros símbolos de beleza também se tornaram grandes musas "inspiradoras": Vera Fisher, que foi Miss Brasil em 1969 e, até hoje, é admirada por sua beleza e juventude (após várias cirurgias plásticas) e Xuxa. Todas lindas e loiras. O antropólogo Gilberto Freyre, que faleceu em 1987, já criticava o avanço do processo "norte-europeizante ou albinizante", como costumava chamar essa onda de cabelos loiros e corpos longilíneos, em detrimento à beleza tipicamente brasileira. Para o estudioso, Sônia Braga era a personalização das formas nacionais: baixa, de pele morena, cabelos negros, longos e crespos, cintura fina, bumbum grande e peitos pequenos. "A brasileira precisa parar e refletir, para isso também serve o meu estudo", provoca Mirian. "Em vez de querer ter a bunda da atriz tal, o cabelo loiro e liso da modelo tal, ficar igual a quem está na moda, deve aprender a cultivar suas singularidades, assim como as alemãs, que valorizam seus traços de personalidade. Precisa aprender a desenvolver seus encantos, independentemente da idade e dos atributos físicos. Não deve se colocar como uma peça a ser escolhida ou rejeitada pelos homens." A pesquisadora costuma citar Leila Diniz como exemplo atemporal, por ter fugido de todos os padrões, contestando o modelo tradicional de mulher. Ela não só engravidou sem ser casada, o que era um tabu nos anos 60 e começo dos 70, como exibiu sua barriga, ao usar biquíni, grávida, na praia de Ipanema. "O corpo dela - assim como o de muitas mulheres de sua geração - estava voltado para o prazer, para o livre exercício da sexualidade, e as imperfeições eram exibidas à luz do sol. O corpo de muitas mulheres de agora é controlado, mutilado, e elas preferem a escuridão, para esconder suas imperfeições", assinala Mirian.

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