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Como entregar museus e parques ao povo

Por Marcos Sá Corrêa
Atualização:

O Parque da Cidade é o mais belo memorial da desordem carioca. Foi chácara do Marquês de São Vicente, do Conde de Santa Marina e do industrial Guilherme Guinle, que a vendeu ao governo em 1939. Como residência senhorial, era visitada regularmente, da Monarquia à República, pelo imperador d. Pedro II e pelo presidente Getúlio Vargas. Como logradouro público, acabou abandonada pelas autoridades. Tem um museu municipal, com 17 mil peças que mal podem ser exibidas, num terreno estadual que se embrenha, morro acima, no Parque Nacional da Tijuca. Três instâncias da administração pública se empilham em sua jurisdição. Mas, na prática, quem manda ali dentro é a favela que sobe com viço tropical à sua volta, derramando-se em seu estacionamento dia e noite, invadindo os gramados com campos de pelada e traçando em suas encostas o labirinto plástico das tubulações clandestinas. O dia em que as ciências sociais resolverem estudar a sério a falência do Estado brasileiro como depositário fiel do patrimônio público, o caminho mais aprazível para os pesquisadores será a ladeira que leva ao Parque da Cidade. Ele dá vista para um modelo de bagunça urbana tão brasileiro como a jabuticaba. E, de quebra, apesar de tudo, continua bonito. Em 70 anos de gestão estatal, sem sair de onde sempre esteve, saltou da aristocracia ao populismo, sem arrancar as raízes solidamente fincadas na preferência nacional pelo regime da propriedade privada. Hoje, seus portões só fecham no fim de expediente para quem não mora na Vila Parque. OUTRO SÍMBOLO Como está, o Parque da Cidade virou um símbolo tão típico do Rio de Janeiro como a herança do inglês James Smithson é a cara da cidade de Washington. Smithson foi um aristocrata nascido na França, filho natural do Duque de Northumberland (inglês). À sombra da devoção iluminista às ciências naturais, fez nome como químico, mineralogista e geólogo. E, em testamento, deixou ao povo dos Estados Unidos sua fortuna, com a condição de que fosse usada "para a difusão do conhecimento". Com uma cláusula dessas, pode-se fazer praticamente tudo, até mesmo a nova televisão oficial do governo Lula. Mas os Estados Unidos, com as feridas da independência ainda abertas, custaram a engolir o presente que lhe parecia uma afronta, despachado como foi, sem mais nem menos, da antiga metrópole. O Congresso americano empurrou com a barriga o legado de Smithson durante seis anos, até que o governo Andrew Jackson decidisse aceitá-lo. Ficou nos anais o argumento do senador sulista William Preston para rebarbar a sorte grande: "Qualquer vagabundo poderá achar que dignificará seu nome dessa maneira." O dinheiro desembarcou nos Estados Unidos em 1838, trazido em 11 caixas cheias de moedas de ouro pelo advogado Richard Rush. Eram US$ 503 mil. Valeriam, atualmente, uns US$ 11 milhões. Mas foi nesse berço relativamente modesto que nasceu a Fundação Smithsonian. Com o tempo, ela foi cercando seu castelo original, em tijolos aparentes, entre 17 mil metros quadrados de jardins no eixo monumental de Washington, com uma faraônica tiara de museus. São da Smithsonian a Galeria Nacional de Arte e os museus da Tecnologia e do Espaço, de História Natural, da História Americana, do Índio Americano, da Cultura Afro-Americana e dos Correios. Ao seu redor brotaram galerias de arte africana, decorativa, oriental e contemporânea. Sem falar no zoológico, com 2 mil animais em 660 mil metros quadrados de parque. A herança de Smithson está em expansão há 170 anos graças a um modo seguro de garantir a presença do povo em antigos redutos do elitismo. Chama-se entrada franca. Pena que não pegou por aqui. * É jornalista e editor do site O Eco (www.oeco.com.br)

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