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Com o chefe do parque, na pista da onça atropelada

Por Marcos Sá Corrêa
Atualização:

Com Jorge Pegoraro ao volante, o carro da administração rodava sem sacolejar no asfalto amarrotado. Naquela hora da manhã, os portões do Parque Nacional do Iguaçu estavam fechados. As cotias trafegavam pelo capim do acostamento, na borda da floresta, como se a estrada fosse delas. Pegoraro dirigia devagar, contornando falhas da pavimentação. Vista assim, ninguém diria. Mas aquela é uma rodovia federal, a BR-469, entregue a uma dessas instâncias técnicas do governo que políticos ocupam para adequar aos rumos e urgências do calendário eleitoral. O piso é sempre feito às pressas para durar um mandato. E acaba datado pelos sucessivos remendos como uma linha do tempo em camadas geológicas. A aspereza do asfalto é uma das queixas que, como chefe do parque, Pegoraro mais ouve, descontado o clamor das agências turísticas contra a estiagem, que este ano secou antes do tempo a maior parte das cachoeiras, reduzindo o cenário espetacular do Iguaçu a um cânion de pedras nuas com a Garganta do Diabo ao fundo. Ali o rio despeja de uma vez a água que sobra em sua calha. Mas o diretor trata de outro assunto: a onça pintada que morreu atropelada semanas atrás, na unidade de conservação. A seca assusta, mas sua lembrança será lavada pelas chuvas da primavera. Onça morta é problema irremediável. A do mês passado pode ter reduzido em 10% a distância que separa a espécie do sumiço total no Iguaçu. Contam-se nos dedos as onças do parque. Era um macho jovem, com 5 anos. O choque o demoliu por dentro, causando hemorragia em órgãos vitais. Mas deixou intactos seus ossos. Por fora, só uma escoriação na cabeça. Virou peça perfeita para a taxidermia. Mas não é disso que o parque precisa. Precisa de um limite sério de velocidade na BR-469, e contra isso conspira a grita permanente da ala pró-asfaltamento. Em média, morrem 20 animais por mês na rodovia. E, como o rio, a fauna silvestre do Iguaçu está baixando, mas de maneira lenta, meio invisível e potencialmente definitiva. No dia em que não tiver mais onça, começará o declínio da floresta. Sem a floresta, ele corre o risco de se transformar num mafuá aquático, como o Niagara. No km 26, Pegoraro aponta o lugar onde a onça caiu. Um barranco baixo e quase a prumo separa a mata do asfalto. Ela chegou à pista num único salto, à noite. Só seis carros passaram pela entrada do parque naquela hora, um deles, um ônibus suspeito, que trazia de um jantar na cidade hóspedes do Hotel das Cataratas. O inquérito policial não achou o culpado. Visitar o local dá a tentação de pôr um ponto final na história. Foi obra da fatalidade. Só que, de repente, uma cotia se assusta e atravessa a estrada, bem na frente do carro. Pegoraro freia. O animal some por um instante do para-brisa e reaparece adiante na moldura da janela lateral, correndo para o mato. A manobra durou menos de 1 segundo. E demonstrou por que só profissionais da conservação deveriam dirigir em parques nacionais. *É jornalista e editor do site O Eco (www.oeco.com.br)

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