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''Ciência deveria ter lei de incentivo''

Para cientista, entrada de equipamentos no País é complicada e as leis não atendem o transporte de animais de pesquisa

Por Daniel Piza
Atualização:

Se o cérebro funciona como "uma democracia de neurônios", em sua própria frase, Miguel Nicolelis, de 47 anos, é um de seus maiores cientistas políticos. Colegas dizem que há um cérebro "antes de Nicolelis" e outro "depois de Nicolelis". Fez demonstrações empíricas sobre a dinâmica dos neurônios, desenvolveu um modelo para entendê-la e passou a criar máquinas de interface que permitem que o cérebro as opere à distância. Graças a ele, é possível seqüenciar muito mais neurônios por mais tempo. Tal descoberta o pôs na lista de candidatos ao Prêmio Nobel. Médico e cientista paulistano, o presidente do Instituto de Neurociências de Natal passa a vida em laboratórios e hotéis. Na semana retrasada, estava na Coréia do Sul. No domingo, estava no Palestra Itália vendo seu time ser campeão paulista e, na última quarta, falava da Carolina do Norte por celular com o Estado. Ele defende mudanças na política científica do Brasil. Com base na experiência dos últimos cinco anos, em que houve problemas burocráticos e alfandegários, o que o sr. sugere para que o apoio a iniciativas como essa (do instituto) seja melhor no Brasil? Há muitas mudanças a fazer na estrutura, principalmente federal, e no trâmite. A entrada de equipamentos, insumos e animais é muito complicada. Parece feita para não funcionar, tal o emaranhado de lei e a burocracia kafkiana. Nossas leis são de 30 anos atrás. São para animais domésticos, para levar cachorro na viagem. Não atendem o transporte de animais de pesquisa. Os prazos são longos. Isso explica por que coisas dessa magnitude em geral não vingam no País. Todos os dias temos razões para desistir, mas não desistimos. O resultado é impressionante, principalmente ver crianças decolando para entender a ciência. De onde vieram os recursos? Nossos recursos foram 70% privados até aqui. E eles têm um impacto que não é apenas científico, mas também social. Precisamos de mais leis que favoreçam o investimento privado em pesquisa. No mundo atual, as empresas que se destacam são aquelas que investem de 1% a 5% de seu faturamento em inovação, em pesquisa. Assim como existem leis de incentivo à cultura e ao esporte, deveríamos ter uma para a ciência. E menos burocracia. Os fundos setoriais são insuficientes. Escolher Natal para sair do "eixo" Rio-São Paulo e estar num lugar atraente para pesquisadores estrangeiros foi acertado? Foi a escolha correta, sem dúvida. Sempre quisemos descentralizar a ciência no Brasil, sair do Sudeste. Por isso, temos vontade de levar a experiência de Natal para outros Estados do Norte e do Nordeste. Queremos enraizar e emancipar esse projeto. Por que fez questão de incluir projetos educacionais? Sempre fui a favor de um modo diferente de fazer ciência, não dissociada da realidade, não abstrata, mais compreensível, mostrando seu impacto na vida das pessoas. E nada melhor do que o método científico para tornar a educação mais agradável, em vez de uma coleção de fatos não correlacionados. A criançada ali registra o ambiente onde vive e o País de uma maneira que não é enfadonha, que é divertida, até porque é feita em grupos. Entre as linhas de pesquisa do instituto, há seu trabalho com interface homem-máquina. Que contribuições os laboratórios de Natal podem trazer, sem ser coadjuvante de Duke, Lausanne ou do Sírio? Muitas. Ele vai colaborar de igual para igual com a rede. Em certas áreas ele estará à frente dos outros, num papel de liderança, não à margem. Descobertas já estão sendo feitas ali. Um centro de primatas como o que vamos inaugurar daqui a dois meses é raro mesmo nos EUA. O sr. está escrevendo um livro? Estou escrevendo três livros. Um sobre minha teoria; chegou a hora de fazer a síntese dos meus 20 anos de pesquisa. O outro é para divulgá-la para um público amplo. E o terceiro é relato do empreendimento de Natal. Como o sr. vê descrições do seu trabalho como "manipulação de robôs pela força do pensamento"? O problema é que o pensamento não tem força; não dá para medi-la (risos). Minha visão é muito diferente. O que consegui foi mostrar que era possível decodificar em outra ordem de grandeza os sinais cerebrais, as atividades elétricas, e daí veio o trabalho com as interfaces. Meus colegas desconfiavam, mas hoje estão reconhecendo que é possível. Já podemos pensar numa terapia com interfaces para pacientes neurológicos. Estamos perto. Qual é sua visão da consciência, por exemplo, em comparação com a de um Gerald Edelman (biólogo vencedor do Nobel de 1972)? Ambos acreditamos que nos últimos 20 anos a neurociência deu um salto com a tecnologia de imagens e os estudos evolucionistas. Mas ele tem uma visão reducionista. Mostrei que o cérebro funciona por populações neurais, não por regiões anatômicas. Ele estudou os neurônios isolados. Trabalhou com poucos dados, então não consegue se desvencilhar dos princípios fisiológicos. É uma visão darwinista, mas não de modo complexo. Para mim, o cérebro tem papel de liderança em relação ao corpo. E a de Antonio Damásio (neurologista português)? O Damásio é um excelente pesquisador, mas acho sua visão tradicional. Ele está preso ao dogma do século 20, a teoria da localização (funções cerebrais executadas em regiões específicas). O cérebro é muito mais participativo, plástico, com funções mais distribuídas. A distinção de áreas anatômicas não é tão nítida.

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