Cartas solidárias

Em tempos de emails, há quem prefira as cartas à moda antiga, mesmo com caligrafia e inspiração emprestados

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Por Vera Fiori
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O Poupatempo Santo Amaro, por onde transitam cerca de 13 mil usuários todos os dias, não é exatamente um local acolhedor, propício a confidências. Mas se aquele balcão branco falasse, quantas histórias não teria para contar. O balcão, no caso, é quase um confessionário expresso, onde pessoas simples entremeiam fatos da vida pessoal com a necessidade de tirar documentos. Além da emissão do RG, carteira de trabalho, etc., uma pequena mas representativa parcela busca ali algum tipo de alento. Pode ser notícias da família, uma mensagem de fé ao filho preso, uma declaração de amor ou um pedido a um programa de TV. Homens e mulheres analfabetos, semianalfabetos ou com certo grau de dificuldade de leitura e escrita recorrem ao Escreve Cartas, iniciativa do governo paulista vinculada à Secretaria de Gestão Pública, que conta com 272 voluntários espalhados pelos postos Itaquera, Santo Amaro, Osasco, Guarulhos e São Bernardo do Campo. Criado em 2001, o projeto foi inspirado na personagem Dora, a escrevinhadora de cartas do filme Central do Brasil, de Walter Salles. O mosaico humano é tão rico e diverso que as carências, solidão e dramas pessoais remetem a um outro filme, A Hora da Estrela, de Suzana Amaral, sobre migrantes nordestinos nas grandes cidades. Só que, ao contrário do cinema, onde se conhece o desfecho da história, os voluntários que escrevem as cartas ficam sem saber o que aconteceu depois. São contatos rápidos, mas nem por isso sem emoção.Para lidar com as mais diferentes situações, os voluntários passam por um curso de capacitação com duração de dois dias, totalizando oito horas. Depois, no decorrer do atendimento, são avaliados. Segundo a psicopedagoga Suely Calasãs, coordenadora técnica e responsável pela implantação do Escreve Cartas nos postos, a caligrafia é apenas um dos requisitos :- Sobretudo é preciso gostar de gente, ter paciência, responsabilidade, ser um bom ouvinte e guardar sigilo das confidências. O usuário tem de sentir que é a pessoa mais importante naquele momento. É da satisfação dele que vem a propaganda boca a boca do projeto. A recomendação é para o voluntário não se envolver tanto com as urgências pessoais que surgem todos os dias, mas a gente sabe que não tem jeito. É difícil separar o atendimento técnico do contato humano.Santo Amaro lidera o número de voluntários (são 120), sendo 57% com nível universitário. A maioria é de mulheres na faixa dos 50 anos. Muitas delas já atuaram como voluntárias em instituições. O atendimento é feito uma vez por semana, com revezamento em turnos a cada duas horas. O programa também inclui visitas externas, realizadas uma vez por mês, a sete casas de repouso da zona sul, onde um grupo de cinco voluntários, entre eles a própria Suely, escreve cartas para os idosos. "É ainda mais delicado, porque a qualquer instante o contato pode ser rompido com a morte daquelas pessoas. Mas é um trabalho muito bonito. Eles aguardam nossa visita com ansiedade, se arrumam, nos recebem com presentes."Nesses oito anos do programa Escreve Cartas, duas situações marcaram a memória de Suely, como a de uma família que veio do Nordeste tentar a vida em São Paulo. "Assim que chegaram, o pai, chefe de família, morreu. Viúva e com muitos filhos, a mulher mandou dois ou três de volta para a Bahia. Depois de 37 anos, quis resgatar o contato com os filhos por meio de uma carta aos parentes. Infelizmente, não soubemos se ela conseguiu ou não reencontrá-los." Às vezes ocorre, sim, um retorno, como o caso de um usuário que escreveu uma carta a um programa de TV pedindo uma viagem de volta à sua terra. "A carta foi sorteada e ele agradeceu à voluntária no palco." Sobre o projeto, Suely ressalta a importância de seu cunho social e a gratificação do voluntariado. "É uma mão dupla. O voluntário dá e recebe em dobro. Quer melhor pagamento do que uma cabeça erguida e um sorriso?"UMA MANHÃ EM SANTO AMAROAtenciosas, as voluntárias do Poupatempo Santo Amaro, Clarisse Mendonça Aun, Leda Perillo e Maria Alice Calixto Bessa relatam à reportagem que o movimento varia muito. "Tem dias que nos pedem apenas para ler algum documento, preencher formulários e montar currículos." Clarisse tem 83 anos, foi voluntária na Apae por 30 anos e integra o Escreve Cartas desde o seu início. A conversa é interrompida pela chegada de uma mulher abatida, com os cabelos grisalhos, puxados para trás. Quer responder à irmã que mora na Paraíba e tira da bolsa uma carta com caligrafia ruim e muitos erros de português. Como a maioria, chega ressabiada, com poucas palavras, mas, conforme se inicia o atendimento, ganha confiança e desenrola sua história. Josefa (apelido Zezilda ou apenas Zilda), empregada doméstica de 58 anos e há 30 em São Paulo, conta que a filha mais velha, Francisca, de 37 anos, morreu em setembro do ano passado. "Ela teve um derrame e minha irmã me escreveu perguntando se era mesmo verdade", fala, emocionada. Diz que o contato com os parentes só foi restabelecido graças a uma vizinha que, coincidentemente, também era de Araruna, sua terra natal, na Paraíba. Analfabeta e sem ninguém para auxiliá-la na correspondência, soube do serviço por meio de um programa de TV. Clarisse pega uma folha pautada, caneta e, sem nunca ter visto Josefa na vida, habilidosa, escreve uma carta bonita, com letra firme. Lê alto para a missivista, que se emociona com as palavras que tanto gostaria de dizer à irmã, mas que não consegue colocar no papel. O envelope é fechado e a própria Josefa coloca na caixa do correio, junto ao balcão.Mas nem tudo é tristeza. Clarisse não se esquece da carta que endereçou ao presidente Lula. "Era de uma senhora que queria vender a fazenda dela em Minas só para ele. Mesmo negativa, a resposta veio de Brasília."O próximo atendimento é feito por Leda Perillo, artista plástica e voluntária há seis meses. O casal Elisabeth e Álvaro Augusto está desempregado e pede um currículo, que é elaborado no computador rapidamente por Leda. Logo em seguida, mais uma solicitação burocrática. Acompanhado do filho pequeno, o baiano Firmino pede que sejam preenchidos uns formulários relativos ao Passe Livre, benefício do governo que permite ao deficiente viajar de graça por todo o País. Faltam algumas informações, mas com boa vontade - o que não se vê frequentemente em serviços pagos - Leda consulta aqui e ali, e completa o atendimento com um sorriso.Clarisse e Leda comentam o impressionante volume de cartas com pedidos endereçados a celebridades. Nisso, chega Vera Lucia, uma moça humilde, de 21 anos, cinco filhos com idades entre 4 e 16 anos, e grávida do sexto. Sonha em voltar para sua terra, Palmeira dos Índios, em Alagoas, e pede para Clarisse escrever uma carta endereçada ao apresentador Gugu Liberato.É hora da troca de turno e entra a voluntária Maria Alice Calixto Bessa, que trabalhou por dez anos como voluntária no Graac (Grupo de Apoio ao Adolescente e à Criança com Câncer ). Das tantas cartas que redigiu, uma a marcou mais, a de um moço de uns 40 anos, de cadeira de rodas: - Pediu uma carta não para ele, mas para um amigo, solicitando à subprefeitura a reativação de uma feira de artesanato que ocorria próxima a uma igreja em Moema. Quando perguntei o seu endereço, indicou o farol da rua tal, embaixo de uma marquise. Perguntei por que não ia para um abrigo, e ele contou que tinha cedido o seu lugar para um amigo não cadastrado, pois este não estava acostumado a morar na rua. Achei a história tão extraordinária que fui checar e realmente o encontrei vendendo artesanato no farol.EM ITAQUERAAposentada e com filhos adultos, Márcia Salgueiro Calixto integra a equipe do Escreve Cartas desde agosto do ano passado e diz que a experiência tem sido um grande aprendizado. "Como o grosso da demanda é de nordestinos, ao escrever é preciso cuidado para não interferir nas expressões regionais, como mãinha, voinha, painho." Conta que as pessoas chegam constrangidas. "Umas falam que esqueceram os óculos, mas quando são chamadas pelo nome e são ouvidas com respeito e atenção endireitam até a postura." Também no posto de Itaquera, é grande o volume de cartas para artistas, pedindo dinheiro ou outro tipo de ajuda. "Às vezes dá vontade de dar uns palpites, falar para a pessoa que é uma perda de tempo, mas nossa função é instrumentalizar os desejos."Fala que nunca sabe como vai ser a rotina. Cartas tocantes misturam-se às esdrúxulas, como um pedido de aposentadoria de uma pessoa que nunca havia tido trabalho na vida. "Quando perguntei se já tinha trabalhado e recolhido o INSS, disse que não, mas que o Lula era o pai dos pobres e que atenderia o seu pedido." Duas situações a sensibilizaram em especial, uma delas foi o caso de um rapaz internado em uma clínica de reabilitação:- Ele sempre escrevia, mas a família não respondia porque não tinha quem o fizesse. Até que alguém próximo veio até nós e contou que a mãe do rapaz, aflita, não tinha notícias do filho há dois festejos do Natal. O desejo dela era passar uma mensagem de conforto, dando a ideia de que seria recebido de braços abertos quando saísse da clínica. Era uma carta de muita responsabilidade e, por ser longa, abrimos uma exceção e o texto foi digitado. Conforme fui lendo, o portador se emocionou e disse que o sentimento da mãe fora fielmente reproduzido, e me pediu uma cópia da carta para que, na noite de Natal daquele ano, tanto o rapaz como a família a lessem em voz alta.Cartas de amor também surpreendem, como a história de um senhor que estava no ônibus e viu o papelzinho de um passageiro cair no chão, mas não teve tempo de devolvê-lo. "Era um poema e ele, então, nos pediu que o transcrevesse numa carta de amor, endereçada a uma senhora com quem estava começando a ter um envolvimento. O poema exprimia bem o que estava acontecendo entre os dois. Ele, viúvo, pedia uma chance, mas ela estava reticente por causa de um relacionamento anterior malsucedido. O desfecho? Ninguém soube."Márcia não se esquece da expressão no rosto de um senhor na faixa dos 50 anos, que foi em busca de emprego. "Explicamos que essa não era a proposta do programa, mas ele abriu a sua carteira de trabalho. Tinha sido funcionário por 25 anos da mesma empresa, até que foi dispensado. Fora do mercado já algum tempo, queria uma oportunidade. Pediu, então, uma carta contando a sua história, endereçada ao programa de TV Tudo é Possível. Li, ele se emocionou e disse que aquelas palavras o faziam se sentir importante."Há também casos de usuários que frequentam o posto semanalmente, como o deficiente visual e massoterapeuta Petrúcio. "Ele escreve em braile e nos pede que façamos o endereçamento das correspondências. Já virou amigo." Clarisse Mendonça Aun, Leda Perillo, Maria Alice Calixto Bessa e Márcia Calixto são mulheres que dão vida aos versos daquele velho samba-canção de Cícero Nunes e Aldo Cabral "quanta verdade tristonha e mentira risonha que uma carta nos traz."

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