''Bixos'' têm de passar por ''estágio'' na Esalq

Além de terem de usar o tradicional chapéu de palha, calouros da instituição em Piracicaba são avaliados pelos veteranos das repúblicas

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Por Emilio Sant'Anna
Atualização:

Pelos próximos 80 dias, o chapéu de palha vai ser item comum no figurino dos alunos do primeiro ano da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), em Piracicaba, a 180 km da capital. Não se trata de uma moda lançada pelos calouros do curso, mas parte de um trote para que eles sejam aceitos de fato pelos "veteranos" da faculdade da USP. Na semana passada, eles receberam seus respectivos chapéus em uma cerimônia marcada pela organização e pela clara subordinação entre os alunos de diferentes anos - que mais se parece com a estrutura das fraternidade das faculdades americanas e se estende até mesmo entre os já formados. Por volta do meio-dia da última terça-feira, cerca de cem calouros se juntaram para receber o item em frente ao centro acadêmico da Esalq, enquanto os veteranos se misturavam entre eles. Até 13 de maio - dia da libertação dos escravos no Brasil e data que marca a "alforria" dos "bixos" (como são chamados os calouros) -, onde eles estiverem, os chapéus também estarão. "É uma tradição, né? Então tem de usar", diz o calouro de Agronomia Fábio Kooite, de 21 anos, ainda meio desconfiado. Paradoxalmente, os incidentes envolvendo o trote em outras faculdades ajudam a criar um clima de apreensão e tudo transcorre sem nenhum tipo de incidente ou exaltação. "O objetivo é receber os alunos que muitas vezes vêm de longe e não conhecem ninguém", explica o presidente da Associação Atlética da Esalq e aluno do quarto ano do curso de Agronomia, Pedro Campos. Para Antônio Ribeiro de Almeida Júnior, professor do Departamento de Ciências Humanas da faculdade, mais do que receber os novos estudantes, a tradição do trote na Esalq segrega. Os calouros que se negam a passar pelas "brincadeiras" são excluídos do grupo. Na Esalq, grosso modo, a divisão entre os alunos se dá em "azuis" e "vermelhos". Os primeiros são mais identificados com a vida rural, ouvem música sertaneja e tem como traje cotidiano boné, calça jeans e botina. São eles que aceitam mais o trote. Já os "vermelhos" tem um perfil parecido ao do bicho grilo. "Depois do período do trote se formam claramente dois grupos. Essa divisão vai se mostrar dentro da sala de aula", afirma Almeida. A explicação de Pedro é outra. Segundo ele, o trote une os alunos e ajuda a lhes dar uma identidade durante a vida universitária. "Uma das vantagens desse tipo de organização é que você forma uma filosofia única", diz. De acordo com essa "filosofia única", o ingressante da Esalq deve respeitar sempre os alunos mais velhos. "Porque cada um tem de passar por isso?", pergunta o presidente da Associação Atlética, para responder em seguida. "Você forma o seu caráter a partir do momento em que entra na faculdade, por isso aqui não interessa seu sobrenome ou quantos alqueires tem sua fazenda em Mato Grosso." A vantagem, diz Pedro, é que essa hierarquia ajuda a manter a ordem e pode render bons contatos. "Essa tradição ajuda a ser recebido em todos os lugares que tenha um ?ex-esalqueano?. Você forma uma rede de contatos que pode ajudar até mesmo a arrumar um estágio ou um emprego", afirma. REPÚBLICAS A tradição das repúblicas é tão forte em Piracicaba que algumas existem há mais de meio século - a mais antiga da cidade é a Copacabana, fundada em 1923. Na maioria delas, os ex-moradores (muitas vezes senhores de mais de 50 anos) se reúnem em churrascos organizados anualmente. Dentro delas, a organização estruturada entre calouros e veteranos se repete. Ao veterano mais antigo da casa cabe comandar e distribuir as funções aos outros moradores. A ele se dá o nome de "supremo". Entre os outros veteranos são divididas funções como organizar as contas da república e cuidar das compras. Para os "bixos", tarefas domésticas como atender o telefone e arrumar a bagunça. Para serem aceitos em uma delas, os calouros passam por um período de "estágio". Até 13 de maio, eles não pagam aluguel e são livres para escolher onde querem "estagiar", mas também têm de mostrar que merecem estar ali. Até mesmo a relação entre as repúblicas segue uma regra. As mais antigas, claro, têm também mais status. Para organizar essas relações, foi criado o Conselho de Repúblicas. Na república Reboq, formada exclusivamente por mulheres, as "estagiárias" são Carolina de Moura Trindade, de 18 anos, e Renata Kodawara, de 19. Elas tentam uma vaga ali e o direito de ter seus chapéus pendurados na parede da sala, assim como o de todas as ex-moradoras da casa desde 1995. "Para a gente não interessa que elas paguem aluguel, interessa que se identifiquem com a casa e com a faculdade que a gente ama", diz a aluna do quinto ano de Agronomia, Caroline Vilela.

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