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Amando duas pessoas

Por Regina Navarro Lins e do Jornal da Tarde
Atualização:

Há aproximadamente 30 anos um filme causou tanto impacto que foi proibido em vários países: Le Bonheur (A felicidade), da francesa Agnès Varda. Conta a história de um casal feliz, com dois filhos pequenos, que costumava passar os domingos num belo parque. Numa viagem de trabalho a uma cidade próxima, o marido conhece uma moça, por quem logo se apaixona. Começam um intenso relacionamento amoroso, entretanto, isso em nada afeta o casamento. Ele continua amando e desejando sua esposa, com a única diferença de se sentir mais pleno, com mais alegria de viver. Acostumado que estava a compartilhar com ela todos os aspectos da sua vida, num daqueles dias no parque, enquanto as crianças brincavam distantes e eles, abraçados, descansavam na relva, ele resolve contar o que está acontecendo. Relatando com toda a sinceridade os fatos, afirma à sua atenta ouvinte que em nada ela foi prejudicada, pelo contrário, é como se numa macieira mais uma maçã tivesse nascido. Percebe estar podendo amá-la ainda mais, já que se sente mais feliz. Como de costume, fazem sexo e dormem. Na cena seguinte ouvem-se gritos vindos do lago. Ao acordar e não ver sua mulher ao lado, corre à procura dela. Chega a tempo de ver seu corpo sendo retirado. Naquele momento, procurando reconstituir em pensamento o que poderia ter ocorrido, imagina ela se afogando e, desesperada, tentando se agarrar a troncos de árvores para se salvar. Era tão verdadeiro o seu amor, que em momento algum passa pela sua cabeça o que de fato tinha acontecido: ela não suportou saber que ele amava outra mulher e se suicidara. Na cena final ele e sua nova esposa, a antiga amante, passeiam alegres de mãos dadas, no mesmo parque com os filhos dele. Os moralistas não se conformaram. Afinal, para eles a transgressão de amar duas pessoas ao mesmo tempo merecia algum tipo de punição. Mas nada de mal acontece com o personagem e sua ausência total de culpa pela morte da mulher foi considerada inadmissível, tendo chocado muita gente. O que poucos perceberam é que não havia mesmo motivos para culpa. O sofrimento vivido pela mulher, e que a levou a uma atitude tão desesperada, é que foi absurdo. O que estava ela perdendo? Absolutamente nada. Ao fazer com que todos acreditem ser impossível amar duas pessoas ao mesmo tempo, o modelo de amor imposto na nossa cultura torna inquestionável a conclusão: "se ele ama outra é porque não me ama". Contudo, não há dúvida de que podemos amar várias pessoas ao mesmo tempo. Não só filhos, irmãos e amigos, mas também aqueles com quem mantemos relacionamentos afetivo-sexuais. E podemos amar com a mesma intensidade, do mesmo jeito ou diferente. Acontece o tempo todo, mas ninguém gosta de admitir. A questão é que nos cobramos a rapidamente fazer uma opção, descartar uma pessoa em benefício da outra, embora essa atitude costume vir acompanhada de muitas dúvidas e conflitos.

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