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A vida ''zumbi'' de quem não consegue dormir

13% dos paulistanos sofrem de insônia, segundo pesquisa da Unifesp; mulheres são as mais atingidas

Por Flavia Tavares
Atualização:

Os olhos abertos fitam o teto e ele fica imóvel, torcendo para que o sono chegue. Não o sono ralo que o acompanha há anos, mas o descanso reparador de que ele tanto precisa para encarar os adversários no dia seguinte. Enquanto luta contra a sensação de alerta, ele sabe que seus competidores repousam profundamente. "É desesperador", desabafa o velocista Sandro Viana, finalista dos 4x100m em Pequim. Sua insônia crônica - quando as crises se repetem por mais de três meses - atingiu o pico entre os grandes prêmios de Fortaleza, Rio e Uberlândia, em maio, quando Sandro só conseguiu dormir um pouco melhor por duas noites em uma semana. "Adormecia às 23h e à 1h despertava com a certeza de que não dormiria mais. Sabia que, na manhã seguinte, encontraria os outros atletas dispostos e que eu seria um zumbi", conta ele. A performance de Sandro estava ameaçada e ele chegou a pedir que seu técnico o liberasse dos outros compromissos ao longo do ano. Mas o treinador insistiu que buscasse tratamentos alternativos, já que atletas não podem tomar nenhum tipo de remédio, e Sandro acatou. "Hoje já consigo dormir cinco horas por noite. Deito assim que bate o sono porque sei que pode ser minha única chance." A agonia de quem quer dormir e não consegue leva a atos desesperados, ainda que injustificáveis, como os que o médico responsável por ministrar altíssimas doses de medicamentos ao cantor Michael Jackson vem relatando, ao depor sobre os últimos dias de luta contra a insônia do astro. Até para anestésicos cirúrgicos, como o propofol, Jackson apelou. Os remédios usados pelo médico Conrad Murray para fazer o cantor dormir - uma escalada de benzodiazepínicos - levaram a polícia de Los Angeles a concluir que a causa da morte de Jackson foi homicídio - o laudo apontou "intoxicação aguda por propofol" e outros cinco medicamentos. Pessoas que tenham noites mal dormidas por períodos prolongados podem experimentar irritabilidade, fadiga, queda de concentração, aumento de peso e doenças cardíacas, além de correr o risco de desenvolver quadros depressivos. ESTUDO E quem não passa por fases insones vivendo em metrópoles? Um estudo epidemiológico dos distúrbios do sono que está sendo concluído pelo Instituto do Sono da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) mostra que 13,2% dos paulistanos sofrem da síndrome da insônia. Pelos critérios internacionais, a insônia vira síndrome quando o sujeito apresenta queixas de dormir pouco e mal; a duração das crises é de mais de um mês; e há consequências diretas no dia a dia do paciente. Os que apenas se queixam de insônia chegam a 37,6% dos moradores da cidade. "Fizemos entrevistas subjetivas e exames objetivos em 1.101 paulistanos, de 20 a 80 anos, de ambos os gêneros e todas as classes sociais", explica Rogério Silva, coordenador da pesquisa Episono. Os dados revelam ainda que as mulheres são mais atingidas pela síndrome: 16,5% das paulistanas se encaixam nesse perfil, contra 9,2% dos homens. A insônia costuma ser mais sintoma do que doença - embora em 35% dos casos seja considerada primária, provocada por uma resposta anormal do cérebro ao stress, deixando as áreas relacionadas à vigília mais ativadas. Quando é secundária, além de ser uma decorrência comum de outros distúrbios do sono, como a apneia, a insônia é frequentemente associada à depressão. "Quem vem se tratar está muito aflito e geralmente condicionado a vários medicamentos", relata Anna Karla Smith, médica do sono. Para ela, fator determinante do tratamento da insônia crônica é a psicoterapia, que ajuda a diminuir a necessidade de remédios e, em último estágio, para que o paciente reaprenda a dormir. "Quando crianças dormimos mais, pois o sono é o momento de processamento das memórias", explica a médica. "Na adolescência e na maturidade, criamos hábitos que nos mantêm longe da cama. E a cobrança do insone, de que ele precisa dormir de qualquer jeito, acaba tendo o efeito contrário." MEDIDAS EXTREMAS Mas a insônia pode se tornar tão crítica a ponto de levar à morte? Excluindo-se a overdose de medicamentos, que pode ser fatal, a privação do sono só é comprovadamente letal em animais. Um experimento de pesquisadores americanos com ratos, feito em 1983, em que as cobaias foram privadas totalmente do sono por dez dias, mostrou que a falta de sono mata. Quando privados apenas do sono REM, aquele estágio em que se sonha, a morte veio em 20 dias. Em 2005, houve o caso de tortura relatado por advogados do ex-presidente dos Estados Unidos George W. Bush, em que suspeitos de terrorismo foram mantidos acordados por até 180 horas (praticamente uma semana). REFLEXOS O que se sabe é que pessoas que não dormem direito por vários dias podem apresentar dores musculares, visão embaçada e discurso confuso. O ritmo dos batimentos cardíacos aumenta e a memória raleia. Os níveis de cortisol, hormônio relacionado ao stress, disparam. São esses os efeitos que levam eventualmente a uma automedicação desesperada. A alternativa é, como na maioria das situações crônicas, procurar ajuda profissional e tratamentos. "Com os remédios mais modernos, as terapias auxiliares e algumas mudanças de hábitos é possível dar qualidade de vida ao insone", afirma a neurologista Anna Karla. É o que Sandro está empenhado em alcançar. Melhorou sua alimentação, procurou técnicas de fisioterapia que estimulam o sono e, por volta das 20h, vai para o quarto. "Interrompo o que for quando me sinto sonolento. Descobri o quanto é valiosa uma noite bem dormida."

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