A psicanálise chega às favelas do Rio

Grupo de terapeutas criou clínica que funciona no Complexo da Maré; detalhes do projeto são narrados em livro

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Por Marcia Vieira
Atualização:

A inspiração nasceu de um dos princípios da psicanálise. Muitas vezes pode parecer impossível, mas sempre se pode inventar um novo rumo para a vida. Com essa idéia na cabeça e muita disposição para entrar numa área estigmatizada pela violência imposta pelo tráfico de drogas, um grupo de psicanalistas da Escola Brasileira de Psicanálise criou um trabalho inédito no Rio, o Digaí-Maré. A clínica de psicanálise funciona todos os dias na Nova Holanda, uma das 16 comunidades do Complexo da Maré, conjunto de favelas na zona norte da cidade, marcada pela violência do tráfico de drogas. Os atendimentos são feitos em grupos de quatro pessoas em sessões que duram em média 40 minutos, seguindo uma orientação lacaniana. Hoje, 12 grupos recebem atendimento. Lá, praticamente ninguém ouviu falar de Sigmund Freud ou muito menos de Jacques Lacan. Também não sabem muito bem o que é esse tal de subconsciente. Mas estão sentindo no dia-a-dia como a psicanálise é capaz de promover mudanças importantes nas suas vidas. Depois de três anos atendendo moradores, os 16 analistas ligados à Escola Brasileira de Psicanálise lançaram o livro Psicanálise na Favela com detalhes sobre o trabalho. Eles chegaram a algumas conclusões. A mais surpreendente é que os sofrimentos existenciais e as angústias dos moradores da favela são, em essência, os mesmos dos pacientes de classe média que passam pelos seus consultórios confortáveis na zona sul. "É óbvio que existem diferenças locais, mas, essencialmente, as questões são muito parecidas", avalia Andréa Reis, coordenadora da casa na Nova Holanda. São angústias diante da separação, da morte de alguém querido. É o medo de perder o controle do filho, de ficar doente. São doenças psicossomáticas que mascaram questões do subconsciente. "Na zona sul, o medo é que o filho beba, bata com o carro e morra. Na Maré, o medo pode ser o filho entrar para o tráfico. No fundo, a questão das mães é a mesma: como controlar o filho", explica Andréa. Na favela, algumas mães recorrem a soluções extremas, como trancar os filhos em casa ou até mesmo procurar o chefe do tráfico para implorar que o filho não seja aceito na quadrilha. Quando nada disso funciona, algumas acabam batendo na casa do projeto Digaí. "Quando alguém abre mão desse controle sobre a vida do filho, produz uma mudança na relação que abre caminho para outras possibilidades. Na hora em que a mãe começa a falar da angústia dela, alguma coisa se separa entre ela e o filho. Aí é possível introduzir outras questões, entre elas como fazer para que o filho se preocupe com a vida dele." Andréa e o grupo que ela coordena constataram que a miséria não determina uma incapacidade de inventar um modo de vida. "A precariedade financeira é realmente violenta. Qualquer cidadão deveria querer que todos tivessem as mesmas condições sociais. Mas essa precariedade não pode ser confundida com uma precariedade simbólica, no sentido dos recursos que cada um tem para inventar um modo de vida. Ser pobre ou ser rico não tem nada a ver com ser mais ou menos aberto para o novo", resume o psicanalista Rodrigo Lyra Carvalho. COMUNITÁRIA A experiência de projetos que levam a terapia para as comunidades carentes deu tão certo que o Ministério da Saúde pretende investir R$ 2 milhões na formação de 1,1 mil terapeutas comunitários este ano, como informou o Estado, em abril. Assim como o projeto Digaí-Maré, a terapia comunitária nasceu longe dos bairros de classe média: a favela do Pirambu, onde vivem cerca de 250 mil pessoas, em Fortaleza. "A montagem das famílias não é mais a mesma. As pessoas não são mais guiadas por aquele arranjo que funcionava antigamente, quando as funções de pai e mãe eram mais distintas e mais delimitadas. Hoje, os pais ficam desesperados, os professores reclamam porque a autoridade não funciona. Essa desorganização é do mundo", acredita Andréa. A grande diferença é que na Maré os efeitos da psicanálise são mais rápidos e intensos. "Por não terem nenhum informação sobre a psicanálise, essas pessoas são mais sensíveis. É o fenômeno da abertura do inconsciente, de alguém que nunca teve contato com a psicanálise. É comum alguém lá dizer ?eu nunca falei desse jeito?", conta Andréa.

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