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Tédio e ócio, apesar de angustiantes, podem fazer bem para criatividade e reflexão

Para especialistas, momentos de desocupação são as oportunidades para sairmos do 'automático'

Por Marcel Hartmann
Atualização:
Tédio e ócio possibilitam ao indivíduo parar e pensar em suas relações e na própria existência Foto: nastya_gepp/Pixabay

Aguardar na fila do supermercado, esperar o elevador ou ficar trancado no trânsito costumam ser experiências bastante relacionadas ao tédio. Esse sentimento é um dos poucos que o ser humano vivencia e busca fugir a qualquer custo. Momentos de desocupação como esses, incluindo aquele tempo ocioso no sofá de casa, podem parecer angustiantes. Mas, apesar de desagradáveis, experiências assim beneficiam nossa criatividade, promovem reflexões sobre a vida e favorecem o aparecimento de soluções para o cotidiano. 

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O tédio é descrito, por muitos, como uma experiência que estressa e angustia. "É quando nos defrontamos com o 'nada'. O tédio nos faz ficar diante do desconhecido e do que a gente não controla. Isso não é prazeroso", diz Hélio Deliberador, professor do departamento de psicologia social da PUC-SP.

Não há um consenso sobre o que, de fato, é o tédio. Muitos estudiosos concordam que é um sentimento resultante de quando os estímulos que o mundo oferece não interessam. Como consequência, a mente tem dificuldade em manter o foco. Temos a sensação de que o tempo passa devagar.

Mais do que uma pedra no sapato, a forma como lidamos com o tédio pode prejudicar nossa vida. Estudos feitos ao longo das décadas mostram que funcionários entediados costumam ter baixa performance, raiva, estresse, insatisfação, faltas e acidentes no trabalho. Já na vida acadêmica, o tédio também gera baixo desempenho e evasão escolar. 

Mas, por detrás desta cortina cinza sem graça, os momentos de tédio no cotidiano escondem uma janela de possibilidades. Várias pesquisas mostram que ficar entediado pode ajudar você a ficar mais criativo - não apenas no sentido artístico, mas de desenvolver soluções para obstáculos do dia a dia. Ao deixarmos vazio o palco da mente, novos atores surgem para contracenar. 

"O tédio está ligado à resolução de problemas, o que é uma forma de criatividade. Há muitas pesquisas mostrando que, quando o cérebro 'desliga', como é o caso do sono e do tédio, a área de resolução de problemas segue trabalhando", diz ao E+ Peter Toohey, professor da Universidade de Calgary, no Canadá, e autor do livro Boredom: A Lively History (Tédio: Uma História Animada, em tradução livre). 

"Certas análises, de filósofos como Heidegger e Nietzsche, alertam sobre a possibilidade de a mecanização do homem fazer ele perder a criatividade", diz Hélio Deliberador, da PUC-SP Foto: Tero Vesalainen/Pixabay

Pesquisadoras do departamento de psicologia da Universidade Central de Lancashire, no Reino Unido, por exemplo, publicaram um artigo em 2014 no qual verificaram, em dois estudos, que pessoas entediadas se tornavam mais criativas. 

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Na pesquisa, um grupo de pessoas fazia uma atividade superentediante - copiar números de uma lista telefônica - para depois criar diferentes usos para copos plásticos, um método padrão aplicado para testar a criatividade das pessoas. Eles tiveram mais ideias do que o grupo que não fez a atividade chatérrima. 

Para checar os resultados, uma segunda rodada do estudo foi feita com outros voluntários, incluindo agora um terceiro grupo para fazer um exercício ainda mais chato: ler a lista telefônica. E foram justamente eles que criaram mais usos para os copinhos de plástico. 

Erika Christakis, autora do livro The Importance of Being Little (A Importância de Ser Pequeno, em tradução livre), sobre educação infantil, defende que pais não devem preencher toda a agenda do filho com atividades extracurriculares. Pelo contrário, ela argumenta que os pequenos precisam viver momentos sem nada para fazer. "O tédio pode ser um grande amigo da imaginação. Às vezes, quando as crianças parecem entediadas, é porque elas ainda não tiveram tempo de se engajar em alguma coisa", disse em entrevista ao site NPR.

“Faz sentido a ideia de que precisamos ficar livres das demandas do dia a dia a fim de encontrar tempo para nossos objetivos”, diz ao E+ John Eastwood, professor de psicologia da Universidade de York, no Reino Unido, e chefe do Laboratório do Tédio, um grupo de estudos com pesquisadores especializados no sentimento.

Microtédio é o nome dado àquele momento curto no qual o indivíduo fica entediado, mas logo consegue ocupar-se com sua rotina Foto: Pixabay

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Microtédio. Em uma época de smartphones e tecnologias de pequeno porte, nada mais compreensível do que adquirir importância uma versão reduzida do tédio: o microtédio. Ele aparece quando você tem apenas alguns segundos ou minutos desocupado - no intervalo comercial, no ônibus ou sentado no vaso do banheiro. 

Você sabe bem qual é esse momento. Provavelmente, aproveita para conferir o celular, o tablet ou as redes sociais. 

Em um artigo, Gabriel Cunha Nunes, doutorando em psicanálise e cultura na PUC-Rio, analisa o fenômeno como uma evolução do "ler um jornal para ocupar-se". O psicólogo argumenta que não há nada de errado em evitar o tédio, mas que também é importante não lutar contra. "Uma fila de banco pode ser o único momento do seu dia em que você possa entrar em contato consigo", escreve.

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"É difícil tirar férias da vida, então esses pequenos momentos é que nos fazem refletir. O problema de recursos como smartphones é usá-los sem significado, a ponto de o tempo passar e sentirmos que continuamos a mesma pessoa", provoca o psicólogo, em entrevista ao E+.

Celulares se tornam próteses, que carregamos ao longo do dia como extensão de nossas mãos. Aos poucos, incorporam-se a quem somos. "A mercadoria é encharcada de sentidos. Hoje, o valor está no objeto, não está na gente. Ao ficarmos sozinhos, não temos mercadorias para nos inundar de sentidos, então a experiência de ficar sem fazer nada é torturante", diz Kátia Flores Pinheiro, professora de psicologia social da Universidade Estácio de Sá, no Rio de Janeiro, e estudiosa do ócio, tempo livre e trabalho.

O ócio, para alguns filósofos, é o momento no qual nos desvinculamos da lógica de produzir o tempo todo, no trabalho e no lazer, paralidarmos com o desafio de descobrir sentidos para a vida Foto: Macdongatran/Pixabay

Tédio e ócio fazem bem? "O tédio, assim como outros sentimentos, tem um propósito", escrevem as pesquisadoras da Universidade Central de Lancashire. O objetivo maior do cérebro ao provocá-lo seria uma súplica ao universo: "por favor, estimule-me". Ou mesmo um pedido de descanso, em meio às exigências do cotidiano. 

"O cérebro precisa 'parar' de vez em quando. Se usamos um motor o tempo todo, ele desgasta mais rápido. Usando essa metáfora, se você ocupa seus sentidos o tempo todo, você se predispõe ao estresse, a fobias e até mesmo à depressão", diz Deliberador.

Em um artigo sobre a relação entre tédio e criatividade para a conceituada Harvard Business Review, o professor David Burkus, autor do livro Under New Management (Sob Nova Direção, sem versão brasileira), sugere o engajamento em atividades tediosas antes de começar o dia no trabalho, como checar e-mails, fazer xerox ou preencher relatórios. Tudo para enganar o cérebro e torná-lo mais criativo. 

Se pensarmos pelo viés da filosofia, o tédio pode nos ajudar a chegar ao ócio. No Brasil, o ócio é comumente visto como algo negativo, ligado à preguiça. No entanto, é ao deixarmos de cumprir obrigações que conseguimos, por fim, focar em nós mesmos. 

"Na modernidade, com a produção industrial e a mudança da lógica do trabalho humano, o tempo desocupado que se usava para refletir e buscar sentido na existência mundana fica de lado. Cria-se um novo tempo: o tempo livre, em contraponto ao tempo do trabalho", diz Kátia, da Universidade Estácio de Sá. 

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Hoje, diz a psicóloga, nosso lazer vira produto. E nosso tempo livre tem que render, seja na Netflix, no cinema, em livros, estudos ou exercícios. Se não preenchemos nosso fim de semana com uma lista de atividades, ficamos frustrados. 

Isso seria resultado de uma lógica na qual estamos condicionados a sentir realização apenas se produzimos ou consumimos - o oposto do que tédio e ócio proporcionam como experiência. E é também por isso que os evitamos. 

"O ócio é coisa séria. É o momento em que ficamos fora do tempo do trabalho e do lazer de consumo. A gente para, olha para o lado e pensa nas pessoas, na morte, no sofrimento, na solidão, sobre nós mesmos. Essas reflexões despertam angústia no indivíduo que não está acostumado. Mas fazem parte da experiência humana", acrescenta a professora. No fim das contas, a completa falta de respostas diante da vida é o que torna o ser humano quem ele é.

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