Racismo na infância: Como criar crianças livres de preconceito?

Grupo ‘Criando Crianças Pretas’ ensina como lidar com o tema com os pequeninos

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Por Camila Tuchlinski
Atualização:
Deh e Paula, criadoras do projeto 'Criando Crianças Pretas'. Foto: Vivian Koblinsky

“Mãe, por que as empregadas são negras?”, “Por que a criança que está pedindo dinheiro no farol é negra?”, “Pai, por que não tem boneca negra na loja?”. Essas são algumas perguntas que podem pegar os adultos de surpresa. Em pleno século 21, a sociedade ainda precisa aprender a lidar com essas situações.  Para despertar consciência racial nas crianças é preciso antes trabalhar o racismo com os adultos. Mas seria possível criar os pequeninos livres de preconceito?  Vendo a necessidade de tocar no assunto, as comunicadoras e amigas Deh Bastos e Paula Batista criaram o grupo Criando Crianças Pretas.

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A ideia surgiu durante o aniversário de um ano de José, filho de Deh.

“No ano passado, meu filho fez um ano. Eu tenho um casamento interracial: eu sou negra e meu marido é branco. Sentia que cada vez mais estava afastada a oportunidade do meu filho se conectar com uma consciência racial e encontrar a negritude dele. Daí fiz praticamente uma festa política: o tema era ‘O Pequeno Príncipe Preto no reino de Wakanda’ (uma referência ao país fictício Wakanda, na África, presente nos quadrinhos da Marvel), a lembrancinha era um livro para as crianças colorirem, com referências da história, ciência, música e arte para as crianças conhecerem esses personagens”, lembra.

Foi então que Paula, que é mestre em Divulgação Científica e Cultural pela Unicamp, sugeriu a criação do grupo. “Eu sou mãe, a Paula é madrasta, mas somos duas ex-crianças pretas. Encontramos uma falta de conteúdo para crianças negras, como lidar com a questão da negritude com as crianças”, afirma Deh Bastos.

Deh Bastos e Paula Batista, fundadoras do 'Criando Crianças Pretas'. Foto: Divulgação/Criando Crianças Pretas

A maioria dos comportamentos de um indivíduo é aprendido, ou seja, assimilado ao longo das experiências de vida e leva em consideração a convivência com o outro. Estudiosos do tema afirmam que o racismo é estrutural e que, de acordo com a Organização dos Estados Americanos (OEA), está intrínseco nas sociedades ocidentais.  No Brasil, o racismo existe desde os primórdios, com a colonização e o estabelecimento de um regime escravocrata. A população negra era vista como mercadoria e ferramenta de trabalho.

Séculos de preconceito não mudam se o diálogo entre as pessoas não se fortalecer. Assim, o papel do Criando Crianças Pretas pode ser considerado como uma rede de comunicação anti-racista. “Não é só em novembro. Nós também estamos vivos e sofrendo racismo durante todo o ano”, ressalta Deh Bastos.

O racismo no adulto

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De que adianta falar sobre o tema com as crianças se elas são essencialmente criadas por adultos, sobretudo na primeira infância? Por isso, o grupo Criando Crianças Pretas promove bate-papos em escolas, empresas e instituições.  “Nós temos uma consultoria de comunicação anti-racista para promover esses diálogos sem dor. Nem dor para o negro, por motivos óbvios porque a história dói, e nem para os brancos, que muitas vezes querem falar sobre o assunto e têm medo de falar, não se sentem seguros, medo de falar alguma coisa que tá errado, de agredir. A gente precisa assumir o racismo nosso de cada dia”, enfatiza Deh Bastos. O trabalho com os adultos brancos é no sentido de ampliar o espaço de reflexão sobre o racismo e, com pais negros, oferecer informações práticas como: como cuidar do cabelo, da pele, abordar sobre os termos, dar indicação de livros, animação e filmes. “Esse trabalho que fazemos é para adultos, porque são os adultos que educam as nossas crianças e só há esperança nas crianças”, diz a comunicadora. Você consegue se lembrar de referências negras na infância, como brinquedos?

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Como criar crianças mais conscientes em relação ao racismo?

Como em todo e qualquer assunto, falar de maneira lúdica e franca com as crianças parece ser o melhor caminho, inclusive quando o tema é racismo. “Nossa premissa número um: dizer sempre a verdade, respeitando a criança como um indivíduo. Claro que com adequação”, ressalta Deh Bastos. 

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A comunicadora dá exemplos de como conversar com as crianças sobre o tema; ouça:

O diálogo vai variar de acordo com o contexto também, segundo a comunicadora: “Principalmente em relação às crianças brancas, procurar nos desenhos infantis personagens negros que foram injustiçados para explicar que a gente vive numa sociedade desigual, que nós não somos todos iguais, lidar com a verdade, mas mostrar para a criança que a gente está trabalhando para ter um mundo melhor. Quando vai falar sobre o quanto nossa sociedade é racista, dizer que as pessoas negras têm menos oportunidades”. Para as crianças negras, a palavra-chave é empoderamento. “Munir essa criança de fortaleza, que ela tenha consciência da ancestralidade dela, da potência da cultura negra, fazer com que essa criança tenha orgulho de quem ela é. Porque é muito difícil uma criança negra num ambiente onde as outras crianças são brancas, ela tem um índice de rejeição é muito alto”, avalia.

Referências negras para crianças no lazer e na cultura

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Faça um teste: vá até uma loja no shopping ou no próprio corredor de brinquedos de um hipermercado e repare nas bonecas colocadas à venda. Quantas delas são negras? Pode ser que na sua época não havia brinquedos assim.  Em 2019, a caminhada em busca da igualdade nas brincadeiras infantis parece lenta e carente de discussão.  Há três anos, a Mattel lançou uma nova linha de Barbies negras. No entanto, o número de bonecas negras é tímido.

Mattel lançou, em 2016, uma edição da Barbie negra. Foto: Divulgação/Mattel

Na primeira infância é mais fácil encontrar desenhos animados que tentam promover a reflexão sobre a diferença entre os povos, como o projeto Grandes Pequeninos ou Mundo Bita

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Existem outras dicas de animação mais específicas, como o Homem-Aranha negro, inspirado em Peter Parker, ou o canal Comptines D’Afrique, no YouTube, que tem centenas de vídeos animados com músicas africanas.

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Nas histórias em quadrinhos, Maurício de Souza lançou, em 2017, a primeira personagem negra de sua obra: Milena.  No mundo da música, há três anos, uma iniciativa daria voz para as crianças negras.  Em 2016, MC Soffia lançou a canção Menina Pretinha, em que fala sobre estética e resistência racial. “Menina pretinha, exótica não é linda. Você não é bonitinha. Você é uma rainha”, diz o refrão.

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