Prefeitura de SP inaugura 2ª unidade da Casa Florescer para acolher travestis e mulheres trans

Centro ajuda esse grupo LGBT a se inserir no mercado de trabalho, voltar a estudar, reatar laços familiares e ficar em dia com a saúde; maioria é vítima do abandono dos parentes e viveu em situação de rua

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Por Caio Nascimento
Atualização:
Além de um abrigo, as moradoras ganham apoio para sair da exclusão e se empoderar na sociedade. Foto: Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social

A Prefeitura de São Paulo inaugurou na segunda-feira, 4, a Casa Florescer II, um centro de acolhida para travestis e mulheres transexuais. Com espaço para acomodar 30 pessoas e com 26 vagas já preenchidas, a maioria das moradoras passou por abandono familiar, contextos de violência, falta de oportunidades no mercado de trabalho e estudo.

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Com o objetivo de superar essas situações, as mulheres montam um plano de vida para os próximos seis meses — tempo que podem permanecer na casa. Elas contam com o apoio de uma psicóloga, uma assistente social e o gerente do lugar, Gilson Reis, de 49 anos. O atendimento é individual e cada uma fala suas histórias, sonhos e frustrações aos profissionais, para assim definir metas em prol de um futuro próspero.

Segundo Reis, muitas demonstram, durante as conversas, que sofrem desde a infância com conflitos de identidade de gênero e grande parte conta que morou pelas calçadas de São Paulo ou em abrigos masculinos, já que os femininos não as aceitam. “Elas trazem para cá a dor do preconceito e da rejeição. Fora isso, as dificuldades nas ruas são grandes: não têm acesso à alimentação, banho e outras questões de higiene”, afirma. A fim de transformar a negligência em perspectiva de vida, o projeto oferece refeições, rodas de conversa, oficinas, palestras, festas, filmes, passeios e um acompanhamento socioeducativo e psicológico diferenciado, de acordo com a necessidade de cada uma. Além disso, conta com empresas parceiras para inseri-las no mundo corporativo. “Nosso trabalho é dar para essas mulheres absoluta autogestão da vida. Queremos que todas tenham condições de conquistar autonomia financeira e estabilidade afetiva, pois as relações de muitas delas com os companheiros são dolorosas”, explica Gilson Reis. O objetivo do gestor se baseia em números e já traz efeitos para a sociedade. A Casa Florescer I, inaugurada em 2015 no Bom Retiro, centro de São Paulo, recebeu até hoje 322 mulheres, das quais 88 conseguiram vagas no mercado de trabalho, cerca de 160 voltaram a estudar e todas aderiram a tratamentos de saúde.

VEJA TAMBÉM: Conheça as instalações da Casa Florescer II

De acordo com a secretária municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (Smads), Berenice Giannella, a pasta já discutia a criação de uma segunda unidade do centro de acolhida desde o começo deste ano para suprir a alta demanda da primeira, uma vez que a procura pelo projeto é alta desde sua criação. Berenice destaca ainda que existe a possibilidade de abrir uma terceira Casa Florescer mais para frente, a depender dos resultados do Censo de População de Rua de 2020, que terá taxas de vulnerabilidade das transexuais e travestis na cidade. “Se houver necessidade, vamos atrás de recursos ano que vem.”

Investindo em sonhos

As duas casas custam R$ 123,4 mil por mês ao município. O dinheiro é repassado para a Coordenação Regional das Obras de Promoção Humana (CROPH), uma Organização da Sociedade Civil (OSC) responsável pela gestão dos lares. A verba é usada para a manutenção do espaço, pagamento dos funcionários e gastos mensais, como cursos e contas de água e luz. O investimento mudou completamente a vida de Duda Valentina, de 41 anos. A transexual saiu da prisão no fim de 2017, após ter sido presa por tráfico de drogas em 2013, e tentou recomeçar a vida ao lado do então marido num albergue de Sorocaba, interior de São Paulo. Quando as pernoites do abrigo venceram, o casal voltou para a rua e foi apedrejado por transfóbicos. Em outubro de 2018, a mulher largou o rapaz e veio para a Casa Florescer, com o objetivo de encontrar um emprego e se manter longe da prostituição e das drogas. Um ano depois, Duda conquistou seu espaço na sociedade com a ajuda da equipe do projeto. É líder de equipe numa empresa do centro de São Paulo, mora de aluguel e está fazendo um curso de auxiliar de enfermagem.  Além disso, ela está reatando aos poucos seus vínculos com familiares, após receber o suporte psicológico do projeto.

Duda Valentina se maquiando. Foto: Caio Nascimento / Estadão
Além de emprego, moradia e estudos, Duda Valentina conquistou sua identidade feminina. RG da mulher não consta mais seu nome e foto masculinos do passado. Foto: Caio Nascimento / Estadão
Duda Valentina na Casa Florescer I. Foto: Caio Nascimento / Estadão

Margot Ventura é outra mulher trans que há um ano tentava reorganizar a vida por meio da Florescer. A jovem, de 24 anos, foi expulsa da casa de seus pais adotivos em outubro de 2018 devido à sua transexualidade e, apesar de ter sido escolhida num orfanato aos dois anos de idade, alega que nunca soube o que é receber amor. Na Casa Florescer, Margot ganhou estímulo para concluir o ensino médio, no final do ano passado, sonha em estudar antropologia e hoje faz um curso profissionalizante de customização de roupas.

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Amante dos livros e das ciências humanas, Margot Ventura busca seu espaço na sociedade. Foto: Caio Nascimento / Estadão
Direito, amor e vida: princípios básicos de humanidade estão em destaque na parede da Casa Florescer. Foto: Caio Nascimento / Estadão

Gilson Reis analisa que há um ‘efeito dominó’ no projeto quando o assunto é estudo e trabalho. Sua equipe está se articulando para que as trans estejam matriculadas em algum curso no ano que vem (seja de ensino escolar ou não) e ele acredita que uma vai se inspirar na outra. “Quando uma investe nisso e é bem sucedida, percebemos que as outras se inspiram e também buscam esse caminho”, explica. “Teve uma moradora da casa que conseguiu um benefício de R$ 1 mil pelo programa Operação Trabalho [da Prefeitura] e as demais se interessaram. Duas outras já entraram para a iniciativa”, completa.Ariane Nascimento, de 23 anos, é um exemplo disso. Abandonada pela família, ela está na Florescer há duas semanas e chegou a começar a fazer Administração, mas não encontrou emprego e precisou trancar o curso por falta de dinheiro. Agora com o suporte da Florescer, ela pretende voltar a fazer faculdade e pretende conseguir uma vaga profissional logo mais. “Sempre sofri muitas injustiças na vida e me apoiei nos estudos, mas não deu certo. Agora vai dar.”

Como morar nas Casas Florescer I e II

As travestis e mulheres trans em situação de vulnerabilidade social podem solicitar acesso à casa por meio de encaminhamentos dos Centros de Referência de Assistência Social (Cras), Centro de Referência Especial de Assistência Social (Creas), Centros POP e outros serviços e órgãos socioassistenciais da Prefeitura de São Paulo. Vale ressaltar que mulheres em processo inicial de hormonioterapia ou com alguma deficiência também são aceitas. Ambas as unidades contam com estrutura de acessibilidade.

Endereços

Casa Florescer I: Rua Prates, 1101 – Bom Retiro, São Paulo - SP

Casa Florescer II: Rua Capricho, 872 – Vila Nivi, São Paulo - SP

*Estagiário sob a supervisão de Charlise Morais

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